Após muitos minutos percorrendo o labirinto tridimensional de corredores, elevadores e bondes do interior da Esfera, Nussaza e Nobur finalmente chegaram ao Hangar 2 - e até antes de adentrarem o compartimento a intensa celeuma que se ouvia já no corredor de acesso indicava que havia uma pequena multidão ali, e possivelmente a Profa. Arieve e o Dr. Dehsmen estavam entre os últimos a chegar. De fato, lá dentro Nussaza constatou que as principais pessoas a bordo já estavam no Hangar. Em particular, lá estavam a Comandante Nevihvia Ujoara, que havia contatado Nobur; Loskar Kerien, o Diretor Científico da Missão; e, finalmente, quem de fato comandava todos os aspectos da Expedição, a toda-poderosa Embaixatriz Itinerante Veiliora Teiromon.
Ao contrário de Nussaza e Nobur, naturais do Continente Austral, o mais populoso de Ohjiren, a Comandante Ujoara vinha do Continente Oriental, e isso ficava bem patente pelo seu tipo racial: pele escura, mas de um marrom-chocolate e não definitivamente preta, cabelos lisos negro-azulados cuidadosamente arrumados num coque e grandes olhos castanho-escuros sempre muito maquiados com sombras (como parecia ser moda atualmente entre mulheres Orientais) brilhando num rosto de traços finos. Ujoara parecia ter regulado seu cronobiotipo para talvez uns trinta e poucos anos, seguindo a tradição ditando que pessoas em cargos mais altos deviam parecer um pouco mais velhas. É claro que isso muitas vezes não tinha qualquer correlação com a idade cronológica, real. Por exemplo Nussaza sabia que Ujoara, que parecia mais velha, era uma criança de apenas oitenta e sete anos-padrão, enquanto que a própria Nussaza, a despeito de sua ilusória juventude, já atingia a idade consideravelmente mais avançada de cento e vinte e oito anos. Oh, bem, algumas pessoas subiam muito alto muito cedo na vida mesmo...
Já o Diretor Kerien devia estar regulado para um cronobiotipo parecido com o de Ujoara, mas para Nussaza ele sempre parecia mais... velho. Provavelmente era seu eterno ar sisudo, severo, rabugento e mesmo carrancudo. E certamente a impressão de maior velhice advinda de rabugice não ocorria apenas na percepção de Nussaza: embora todos respeitosamente se dirigissem a ele como "Diretor Kerien" em sua presença, pelas costas o chamavam simplesmente de "o Velho", ou às vezes (no caso de algum eventual atrito com o Diretor) "o Velho Ranzinza". Nussaza tomava isso como uma evidência anedótica favorável ao ditado "a idade é um estado de espírito", quase desconhecido em um Mundo Pós-Mortalista como Ohjiren, mas bastante comum em Mundos Tradicionalistas, onde culturalmente as pessoas encaravam o envelhecimento e a morte como uma parte indispensável da vida humana. De qualquer forma, o tipo racial de Kerien era bem típico do Continente Hiperbóreo: baixo, pele cor-de-bronze, cabelos escuros lisos, pesados e brilhantes, e olhos puxados.
Finalmente, considerações sobre cronobiotipo e raça eram meio que inaplicáveis à Embaixatriz Teiromon, simplesmente porque a mesma não era mais exatamente... humana. Veiliora Teiromon era uma Azul.
As técnicas de rejuvenescimento e regeneração podiam prolongar indefinidamente a vida biológica - ainda que, na prática, ninguém aguentasse viver mais que uns duzentos ou trezentos anos e recorresse sem pestanejar ao suicídio ou à eutanásia quando chegava àquele estado em que coisas realmente novas e interessantes deixavam de existir, porque tudo o que existia para ser experimentado ou pensado já o havia sido, e o que ainda existia de desconhecido parecia não valer o esforço para conhecer. De qualquer forma, mortes por acidente, assassinato ou (muito raramente) por alguma doença nova e ainda sem cura eram possíveis antes desse limiar da Morte Voluntária.
Mas, se o corpo biológico original era perdido, um ser com as mesmas memórias e pensamentos podia ser recriado. Vários pós-mortais gravavam periodicamente hologramas morfogênicos de si mesmos; alguns até dormiam em sarcófagos morfogênicos para garantir que seus seres fossem backupeados com frequencia diária. Assim, se (digamos) algum horrível acidente acontecesse e destruísse além de qualquer possibilidade de reparo o corpo biológico do pós-mortal, um Azul seria instanciado a partir de seu holograma morfogênico.
Nos primórdios das tecnologias pós-mortais, aparentemente tentou-se o que seria uma reencarnação de fato - o crescimento de um novo corpo biológico, replicando o original perdido, e em cujo cérebro as memórias e pensamentos do original seriam reimplantados. Infelizmente, o complexo e caótico processo ontogênico de um corpo vivo provou ser basicamente indomável, em particular com o cérebro se formando com uma topologia de neurônios que jamais era exatamente a do original, o que tornava o problema do mapeamento de informações da configuração original para a nova computacionalmente intratável.
A solução encontrada foi então criar um novo corpo *bionítico*, e não biológico. Após séculos de experimentação com vários tipos de géis bioníticos morfogenoreativos, chegou-se ao Plasma Mimético de Kerzuta, uma gosma diáfana azul-turquesa que se moldava perfeitamente a um holograma morfogênico, replicando com funcionalidades de nível celular o corpo - e a mente - do original a partir do qual o holograma foi gravado.
O resultado era um Azul - um ser andante, falante e pensante com todas as memórias e demais processos e estados mentais do original, feito à sua imagem e semelhança, e que para quase todos os fins práticos sociais e legais de fato era o original. Embora, é claro, o fato dos Azuis transcenderem a biologia fizessem com que essa equivalência não fosse - não pudesse - ser perfeita. Embora tivessem o sentido do paladar, os Azuis não comiam: em vez disso, recarregavam suas células bioníticas "dormindo" (ou entrando num estado de baixa atividade) num campo energético; ocasionalmente recebiam também mais infusões de plasma mimético para reposição de material desgastado. Os Azuis não se reproduziam, a não ser no sentido bizarro de que podiam, se quisessem, criar cópias perfeitas - ao nível mental - de si mesmos preenchendo com mais plasma mimético um holograma morfogênico atualizado. Finalmente, os Azuis não tinham simulações lá muito fiéis de sistemas hormonais, e assim suas percepções sexuais e emocionais podiam ser perturbadoramente ausentes ou irreconhecivelmente diferentes da norma humana.
Tudo isso parecia contribuir para uma estranha sensação de "ausência do eu", usando um termo que os psicólogos especializados em Azuis gostavam. Quando Nussaza se enveredava por essas reflexões - e isso frequentemente acontecia na presença da Embaixatriz Teiromon - sempre acabava por se lembrar das palavras do clássico "A Recursão Infinita da Simulação do Ego", de Shandreale Tossan, onde o famoso escritor registrou suas impressões após se tornar um Azul. Em certo momento ele escreveu "Não sou Shandreale, sou uma estátua de vidro azul maleável que, do alto da soberba fria de suas reflexões, pensa ser Shandreale".
Eventualmente, Shandreale Tossan colocou seu sarcófago morfogênico e a si mesmo dentro de um Despolarizador, que então foi ativado. O que era o corpo Azul de Shandreale derreteu novamente para uma massa informe de gel translúcido (guardado até os dias de Nussaza em um frasco exposto ao público - uma urna funerária para Azuis, por assim dizer - num magnífico memorial no Continente Hiperbóreo), e o padrão gravado no Sarcófago foi apagado. Shandreale Tossan, o poeta e escritor, estava finalmente, totalmente, completamente morto, sem qualquer possibilidade de ressurreição.
Mas suas palavras continuavam vivas.
No caso da Embaixatriz Teiromon, as esquisitices emocionais e psicológicas que costumavam afetar os Azuis aparentemente não se manifestaram - ou, se existiam, ao menos eram muito bem disfarçadas. (Nussaza acreditava especialmente na segunda possibilidade, ao se lembrar de um daqueles curiosos jantares em companhia da Embaixatriz, onde a mesma não comia nada, apenas levava porções ínfimas de um ou outro prato à boca para degustação. Nessa ocasião, Deiliora Teiromon havia feito a enigmática observação de que "interpretava a si mesma muito bem"...) De qualquer forma, ainda assim algo em sua postura e forma de movimentar era bem pouco humano - Nussaza sempre tinha a impressão de estar vendo uma exótica estátua de vidro azul diáfano, que estranhamente estava vestida, majestosamente imóvel, brilhando magnificamente sob a luz artificial branco-azulada difusa predominante no interior da Esfera. Mas então a estátua se movia com uma fluidez completamente incongruente com sua aparência vítrea - e que ao mesmo tempo parecia regular demais para um ser vivo.
Como era baseada num holograma morfogênico, a "estátua" havia sido feita à imagem e semelhança da Teiromon original, e essa forma era a de uma mulher bonita, de traços refinados ao ponto de soarem aristocráticos, com corpo de violão e cujo original devia ter morrido usando um cronobiotipo de uns trinta anos. (Embora a ausência de um tom de pele e uma opacidade humanos tornassem difíceis essas considerações de idade aparente.) A grande peculiaridade na qual ela provavelmente diferia muito da original era a completa ausência de cabelos ou pelos de qualquer espécie - como essas escrescências não eram material vivo, não eram capturadas pelo holograma morfogênico. Alguns Azuis contornavam essa limitação da técnica implantando artificialmente cabelos, sobrancelhas e demais excrescência capilares, mas Teiromon optou por um visual "natural" (seja lá qual fosse a aplicação desse adjetivo a um Azul), totalmente desprovida de fios capilares de qualquer tipo.
Existia um bom motivo para a Embaixatriz Teiromon ser tão fascinante para Nussaza - ou, a propósito, para qualquer outro humano biológico a bordo da Esfera. Azuis vivendo entre humanos de carne e osso eram bastante raros em Ohjiren. Mesmo em várias civilizações pós-mortalistas como a do mundo natal de Nussaza, de alguma forma obscura a cultura e a sociedade não absorviam bem entidades nitidamente pós-humanas como os Azuis. Esperava-se que, após renascer como Azul, um ex-humano se mudaria para um dos Mundos Imortais - onde por um ou outro motivo a população convergia para uma maioria de Azuis. Ou, mais frequentemente até, a quase totalidade da população era de Azuis, já que frequentemente os Mundos Imortais eram impróprios para a vida humana. Afinal, os Azuis não precisavam de ar, água ou comida, e funcionavam em uma gama de temperaturas mais ampla. Vários dos mundos que os Empíreos encontravam e que eram imprestáveis como empreendimento imobiliário para humanos por outro lado pareciam acolhedores para a percepção já um tanto inumana dos Azuis. Quaisquer que fossem as condições do Mundo Imortal escolhido, porém, um Azul que decidisse migrar para o mesmo de certa forma estava aceitando uma "morte simbólica", desligando-se de sua sociedade, amigos, família e indo "para um lugar melhor".
Mas não no caso de Veiliora Teiromon. Antes do acidente que destruiu irrecuperavelmente seu corpo biológico original, ela já havia se tornado importante demais, por tempo demais, na política de Ohjiren. Os rumores eram de que os planos de Teiromon de fato eram se mudar para um Mundo Imortal, mas várias figuras políticas importantes da época imploraram para ela ficar - por contrário que isso fosse à cultura e por bizarro (e talvez "errado") que isso corresse o risco de parecer na percepção popular. Talvez sua migração gradual para o campo da política externa, e em particular para a Expedição, que a manteria separada de Ohjiren por anos, fossem um "termo de compromisso" entre ela continuar servindo ao seu planeta e ao mesmo tempo se afastar do mesmo...
Finalmente, havia ainda um segundo motivo - mais pessoal - para Nussaza ser tão perturbada por Azuis. Com mais de um século de idade, Nussaza ainda não havia providenciado um único holograma morfogênico sequer. Se ela morresse, seria para sempre. Nussaza invariavelmente se sentia perturbada com a idéia de se tornar uma Azul, ou - dependendo de como se definia a identidade do eu - a idéia de ter uma imitação artificial de si mesma com os mesmos pensamentos e memórias após sua morte biológica. Mas ao mesmo tempo ela não se sentia preparada para uma morte definitiva...
As intermináveis, labirínticas elucubrações de Nussaza em torno dos Azuis finalmente foram interrompidas por um evento externo. As grandes portas de correr do hangar começaram a se abrir, enchendo o recinto com um som metálico cavernoso. Uma leve brisa carregando a atmosfera exterior desagradavelmente viciada (e com um sutil cheiro de mar que Nussaza só notou naquele momento) invadiu o compartimento - ao que parecia, o ar lá fora continuava bastante parado, mesmo na altura daquele hangar, que era próximo ao pólo superior da Esfera, mais alto ainda que a pequena plataforma de observação onde Nussaza e Nobur estavam minutos atrás.
Lá fora, o panorama continuava um jogo sombrio de mar e nuvens escuras e os escarlates e vinhos do crepúsculo estático e eterno do grande sol vermelho. Porém, um pontinho brilhante - ficando cada vez mais brilhante, ou talvez cada vez mais próximo - se destacava ao longe, acima do horizonte colorido de vermelho e preto. Nobur - que havia entrado em um de seus transes em comunhão com a Nuvem enquanto Nussaza entrava em suas espirais de pensamentos sobre os Azuis - deu então sinais de vida, comentando:
- Ah, lá está o cilióptero do nosso, hum, comitê de boas vindas. O ponto brilhante no céu, vê? De acordo com o que acabei de checar na Central de Rastreamento, é um modelo grande que deve chegar em mais uns dois minutos.
De fato, em mais algum tempo era possível ver que o ponto brilhante era mesmo um objeto de formas arredondadas se aproximando, num ângulo que refletia o sol aparentemente em sua parte inferior. Com mais alguma aproximação, o objeto revelou-se realmente como um cilióptero especialmente grande, talvez para umas vinte pessoas - a forma parecia um intermediário entre uma arraia e um cogumelo, afim de conseguir alguma sustentação aerodinâmica planando e contrabalançar a relação área-superfície já um tanto desfavorável, que fazia com que o ar movido pela vibração dos bilhões de cílios micromecânicos cobrindo seu casco esterior fosse quase que só o suficiente para erguer a nave do chão. Com mais aproximação ainda, Nussaza notou que, além de grande, aquele era um modelo sofisticado: não existiam portas ou janelas visíveis, indicando que tudo ficava selado com soldas moleculares reversíveis; e os cílios propulsores deviam ser de um tipo particularmente fino, pois não havia qualquer sinal de "aveludamento" da superfície denunciando a presença dos mesmos. Por isso mesmo o cilióptero lembrava uma poça de mercúrio deformada num volume simétrico e vagamente aerodinâmico, formando uma superfície espelhada contínua que funcionava tão bem para refletir aquele incômodo clarão vermelho do sol local.
Finalmente, a aeronave aproximou-se o suficiente para que o vórtice de vento que a sustentava invadisse o hangar. Alguns dos presentes discretamente tentaram acomodar com as mãos roupas e cabelos mais suscetíveis a movimentações bruscas do ar. (Como era de se esperar, a Embaixatriz Teiromon, desprovida de excrescências capilares e usando um vistoso vestido colado, continuou impávida como uma estátua de vidro azul.) Segundos depois da ventania, o próprio cilióptero começou a adentrar o hangar, projetando uma sombra deslizante suave sobre o piso e brilhando agora num fulgor branco-azulado sob a luz artificial típica do interior da Esfera.
Então, Nussaza notou um toque de sofisticação a mais: a ventania começou a diminuir e finalmente parou, mas ao mesmo tempo a aeronave continuava pairando alguns palmos acima do piso metálico.
- Hum, um mecanismo de "pouso sem toque" por levitação magnética - concluiu Nobur, acrescentando em tom desdenhoso: - Interessante, mas caro e pouco eficiente.
Enquanto a porta do hangar voltava a se fechar, o contorno oval de uma porta apareceu do nada na parte frontal do cilióptero, revelado pela desativação de sua solda molecular reversível. Logo a porta se abaixou, revelando uma rampa engenhosamente articulada em sua superfície interior.
Finalmente, as primeiras pessoas começaram a descer a rampa.
Com um certo desapontamento, Nussaza notou que essas primeiras pessoas eram Humanas, e não Canimórficas. Um grupo de talvez meia dúzia, todos homens, todos muito claros - louros e ruivos, e mesmo um Platinado que chegava a resplandescer sob a iluminação interior da Esfera - e todos vestidos de vermelho-sangue vivíssimo, no que parecia um uniforme com um quê de marcial. A observação atenta de Nussaza no entanto logo foi porém novamente interrompida pela voz de Nobur - mas agora chegando com a distorção ecoante e fantasmagórica proposital, bem como a bizarra sensação de estar vindo de dentro, características de uma comunicação fonotelepática - dizendo:
[Quem são essas pessoas fantasiadas de pimentão vermelho?]
Obviamente não era o tipo de pergunta mais diplomática do mundo, e consequentemente não muito recomendada para ser feita em voz alta. Além disso, seria impolido para expedicionários de segundo escalão como Nussaza e Nobur tagarelarem durante um encontro envolvendo seus superiores; e Nussaza sentia que haveria muito o que tagarelar durante aquela cerimônia. Logo, sua resposta fluiu pelo mesmo canal fonotelepático:
[Não havia notado até agora que o senhor tem vestígios de pendor para o humor, Dr. Dehsmen. Mas, respondendo à sua pergunta, esses são representantes do Governo Leilsonehr. Conforme talvez fosse de se esperar de um povo que vive sob um dia eterno produzido por um sol vermelho, eles têm uma adoração pela cor vermelha que para nós que viemos de fora pode parecer até meio obsessiva ou mesmo doentia. Ah, sim, se você reparar bem verá que existe um pequeno detalhe nesse uniforme que eles usam representando o próprio sol vermelho, ainda que seja um pouco difícil de ver porque é só um contorno dourado fino desenhando o círculo solar e uma coroa de chamas estilizadas ao seu redor.]
[Ah, sim, notei. É claro porém que dizer que o sol deste mundo é vermelho é quase uma liberdade poética. As assim-chamadas "anã vermelhas" brilham com uma temperatura de cerca de três mil graus, como uma lâmpada incandescente, e assim a rigor a visão humana percebe a luz como amarelada. Porém, Taehstum está próximo ao limite interno da zona habitável de seu sol, e de fato o centro do Hemisfério Diurno forma a chamada "Zona Tórrida": é quente demais para suportar vida humana. Assim, na prática só a zona do hemisfério diurno até uns trinta graus do terminador, a linha separando o dia da noite, é habitável, formada por vários tipos de biomas tropicais. Todo o Povo Ensolarado vive nessa faixa, e então acontece um efeito adicional que realmente torna o sol muito vermelho: interferência atmosférica. Eles estão numa eterna zona crespuscular, com a luz solar entrando em ângulo na atmosfera e avermelhando-se com difração por partículas de poeira em suspensão. Sóis de todas as classes ficam avermelhados com esse efeito do crepúsculo, mas no caso de um sol como o de Taehstum, que de fato tem o pico de emissão de luz visível na faixa do vermelho, o efeito é soberbo, com todo o céu se enchendo de luz muito, muito vermelha, como uma inundação de sangue luminoso.]
Nussaza espantou-se ao ouvir o circunspecto Dr. Dehsmen usando uma linguagem estranhamente dramática para descrever um fenômeno natural. Aliás, mais estranho que isso: ele estava fazendo um julgamento apaixonado sobre a beleza desse fenômeno. Será que exposição constante àquele crespúsculo eterno e berrantemente vermelho começava a afetar a mente das pessoas? Mas ela e Nobur até agora não deviam ter sofrido nem meia hora de exposição. No entanto, Nussaza notou que ela mesma havia experimentado uma estranha reação emocional ao crepúsculo sem fim de Taehstum, aparentemente oposta à de Nobur: para a Profa. Arieve, a visão era lúgubre, opressiva e aterradora. Em todo caso, completamente ignorante da reação de Nussaza, Nobur prosseguia transmitindo, inclusive agora mudando ligeiramente de assunto:
[Outra coisa que chama a atenção é a brancura deles. O potente sol branco de nossa amada Ohjiren meio que exige pessoas de pele muito escura como a nossa, mas aqui, onde quase não existe radiação ultravioleta... É quase difícil de acreditar que os vampiros têm a pele ainda mais branca, na verdade colorida por um pigmento branco subjacente de função ignorada. Aliás, se repararmos bem, a pele desses Ensolarados não é exatamente branca, mas sim levemente rosada. É na verdade a cor do sangue fluindo sob a pele transparecendo levemente através desta. Hum, será que pessoas de pele tão clara assim parecem mais saborosas para um vampiro?]
Nussaza não transmitiu uma resposta - ou melhor, sua resposta a essas estranhas curiosidades do Dr. Dehsmen foram um rolar de olhos. Felizmente, Nobur novamente mudou o foco de suas observações sobre os Ensolarados:
[Mas possivelmente a surpresa mais fascinante é a presença de uma pessoa velha, ou talvez seja melhor dizer envelhecida, entre eles! O senhor do meio. Não é um pouco estranho uma pessoa assim num cargo desses?]
[Você está pensando com uma ótica preconceituosa Ohjirense] - começou Nussaza a explicar, pacientemente. - [Os Ensolarados são um povo Tradicionalista, em oposição à nossa cultura Pós-Mortalista. Eles acreditam que a extensão indefinida da juventude e da vida é contrária à natureza humana. Aceitam medidas comportamentais com dieta, exercícios, estilo de vida em geral, para mitigar efeitos do envelhecimento, mas se recusam a mexer na própria maquinaria celular e genética para cortar o mal pela raiz, como nós fazemos. Aliás, a questão toda é que culturalmente eles não enxergam a velhice como uma doença degenerativa, mas sim como parte de viver uma vida humana. Mas, enfim, em Ohjiren basicamente o único povo Tradicionalista que conhecemos são os milhões de imigrantes que chegam de Kukonsuës para trabalhar em diversos tipos de serviços de baixa qualificação e mal-remunerados, o que talvez explique seu aparente preconceito de que uma pessoa envelhecida não poderia ocupar um alto cargo; de fato isso é inaudito em Ohjiren, onde a elite do planeta, da qual fazemos parte, é formada pelos nativos pós-mortais para os quais deixar a velhice tomar conta é socialmente inaceitável. Aliás, percebo em Ohjiren um ciclo social vicioso: a elite vê que a população pobre de imigrantes e seus descendentes é pobre, vê que existem velhos nessa população, associa velhice com pobreza e sente seus valores Pós-Mortais ainda mais reforçados; e por outro lado os imigrantes Kukonsuessis percebem boa parte dessa reação da elite nativa como arrogância e soberba, e sentem isso como um incentivo para abraçar mais ainda seus valores Tradicionalistas.]
Como muitas vezes acontecia, Nobur parecia pronto para aceitar as críticas de Nussaza sem grande relutäncia, como demonstrou pelo seu próximo comentário:
[Outro aspecto interessante que enxergo na sua análise é o fato de Kukonsuës ter um sol primário laranja, e ser habitado por raças mais claras. Os Ensolarados lembram fisicamente os Kukonsuessis inclusive nesse aspecto também, evocando os conhecidos preconceitos contra gente clara alimentados por nós, Ohjirenses "legítimos"...]
[Idéias e reações um tanto exóticas provocadas pelas simples diferenças entre as pessoas existem em qualquer lugar] - adicionou Nussaza em tom contemporizador. - [Aqui em Taehstum também existe um tipo de conflito étnico-cultural entre os Ensolarados e os Vampiros que lembra vagamente aquele entre os Ohjirenses e os Kukonsuessis. Mais especificamente, a cultura Tradicionalista dos Ensolarados provavelmente é reforçada pela relativa proximidade dos Vampiros. Estes são eternos, imutáveis, quase indestrutíveis e claramente mais que humanos. Com vizinhos como esses, os Ensolarados parecem se sentir tentados a exarcerbar suas características humanas, procurando enxergá-las mais como uma força que como uma fraqueza.]
Àquela altura, um novo grupo de pessoas desceu do cilióptero - e dessa vez não eram "pessoas" na definição antropogênica que Nussaza normalmente usava.
[Lobisomens!] - Exclamou Nussaza pelo canal fonotelepático. Interessantemente, houve um certo ruído de vozes indistinto na multidão, indicando que algumas pessoas simplesmente não conseguiram conter uma exclamação vocal, ou talvez movimentos mais sutis (mas não totalmente silenciosos), como suspiros muito profundos.
De qualquer forma, lá estavam eles: uns três, não, quatro espécimes de Canimórficos de Taehstum. Uma olhada instantânea sem prestar muita atenção poderia sim dar vagamente a impressão de homens com cabeças de cachorro - o que talvez jutificasse a alcunha popular de "lobisomens" - mas essa primeira interpretação visual desatenta desmoronava com mais uns poucos segundos de observação. Logo ficava claro que, embora os Canimórficos fossem bípedes, o corpo deles como um todo era bem distanciado do de um humano.
A propósito, as alegadas "cabeças de cachorro" apresentava alguns detalhes um tanto incomuns para canídeos, mas ainda assim - talvez devido à imensa diversidade de raças de cães existentes - lembravam cachorros. A testa parecia alta e pronunciada demais e as orelhas pareciam pequenas e no lugar "errado", baixas demais. De qualquer modo, os focinhos eram pronunciadamente caninos, na verdade até lupinos: compridos, ameaçadores, com pontas de dentes pontiagudos saindo por entre os lábios negros. Um deles estava de boca aberta e com uma língua rosada enorme para fora, arfando como qualquer cachorro comum.
Mas o corpo não lembrava nem humanos e nem canídeos. Ao contrário dos humanos, que andam como "torres", verticalizados e equilibrando-se temerariamente apenas sobre os dois pés, os Canimórficos andavam com a coluna praticamente na horizontal, contrabalançando o peso do torso por meio de uma massiva cauda. Assim, seus corpos lembravam mais os de dinossauros bípedes, ou talvez cangurus. Correspondentemente, os braços pareciam um tanto curtos em relação ao resto do corpo, e pareciam ser preferencialmente mantidos recolhidos, dobrados. As mãos pareciam longas e desproporcionais demais para ter alguma similaridade com as humanas, mas possuíam polegares oponíveis. Os dedos terminavam em unhas longas de corte arredondado, como as de cães.
Os pés das criaturas estavam visíveis e assim era possível ver que as unhas por lá eram do mesmo tipo. A propósito, a roupa que eles usavam era uma única peça metálica, uma espécie de armadura multi-articulada (e aparentemente leve) que cobria suas costas, peito e barriga, deixando os braços, pernas e cauda completamente livres. O corte estratégico das armaduras também cobria o sexo das criaturas, e Nussaza pensou que talvez aquilo fosse mais uma consideração com os humanos que algum tipo de tabu de nudez dos próprios Canimórficos. Surpresa, Nussaza constatou que ficaria constrangida se visse uma das criaturas completamente nua, com os genitais à mostra...
[Você tinha razão, Nobur, eles não lembram bem nem cachorros nem homens] - Nussaza finalmente comentou.
[De fato. No entanto, devo dizer que nitidamente lembram animais domésticos.]
[Como assim?]
[Veja por exemplo o Canimórfico da direita, ele é malhado com um padrão de branco e preto. Já o da esquerda tem orelhas caídas. São padrões comuns a várias espécies de animais domésticos, mas não são encontrados em animais silvestres. Interessantemente, esse padrão vale até para formas de vida alienígenas, não-terragênicas: por exemplo, em nossa amada Ohjiren os turupikus vivendo em seu habitat natural são listrados em um padrão que produz uma certa camuflagem com as florestas de alga vermelha; mas os turupikus domesticados, que vêm sofrendo seleção artificial há séculos e séculos, desenvolveram um padrão malhado inexistente no meio natural...]
[ ... E esse padrão malhado ficou tão característico que se pedirmos a uma criança de Ohjiren (provavelmente uma do litoral do Continente Austral, onde os turupikus crescem melhor) para desenhar um turupiku, ela desenhará um turupiku doméstico, malhado] - completou Nussaza, pensativa.
[Na verdade a maior parte das crianças, ou mesmo dos adultos, sequer tem consciência de que existe uma espécie selvagem de turupiku que já existia centenas de milhões de anos antes de humanos chegarem a Ohjiren] - retificou Nobur.
[Bom, de qualquer forma, essa aparência domesticada dos Canimórficos corresponde bem ao que eu esperaria de uma espécie criada artificialmente.]
[E criada artificialmente por uma meta-espécie artificial. Não é um lindo exemplo de recursão?]
Nussaza aquiesceu levemente com a cabeça, mas de fato não estava certa do significado de "recursão"; porém, sentindo que esse significado devia ter relação com mais uma das fascinações matemáticas irritantes do Dr. Dehsmen, preferiu não consultar a palavra na Nuvem. De quaquer forma, mais um grupo de pessoas - o último - emergiu do cilióptero.
[Eis que surgem nossos amigos onipresentes, os Empíreos] - anunciou Nobur com uma escolha de palavras que poderia soar levemente jocosa se tivesse vindo de outra pessoa.
Porém, Nobur era demasiadamente sério para suas palavras serem interpretadas assim, e além do mais os Empíreos eram mesmo onipresentes, de certa forma. Eles estavam em todos os mundos habitados. Na verdade, os Empíreos eram os *responsáveis* pela existência de uma infinidade de mundos habitados.
Os Empíreos deviam seu nome, obviamente, ao Empíreo, a "dimensão" (na falta de palavra melhor) além dos universos, do tempo, do espaço, da realidade, da própria Existência, por onde as Esferas passavam em suas viagens entre os mundos. Os Empíreos gastavam possivelmente mais tempo viajando pelo Empíreo que estacionados em contínuos espaço-temporais normais, daí se chamarem pelo próprio nome de seu "meio natural".
Sem as Esferas Exploratórias dos Empíreos, capazes de viajar livremente pelo Empíreo sem ficarem restritas aos mundos já ancorados ao Hiperplano, não existiria um contínuo fluxo de novos planetas e luas habitáveis sendo descobertos, e então também ancorados e assim abertos para colonização usando as Esferas comuns que só tinham graus de liberdade para se movimentar pela Hipersuperfície.
Dado que grande parte do "modelo de negócios" profundamente "imobiliário" dessa civilização envolvia viajar e viajar pelo Empíreo, tanto em busca de mundos virgens como para fazer manutenções nas Âncoras dos mundos habitados, os Empíreos apresentavam uma série de características pouco usuais.
Os próprios mundos que eles descobriam e mantinham ancorados na Hipersuperfície eram para eles apenas pontos de passagem transitórios, e mesmo as cidades flutuantes que mantinham em águas internacionais desses mundos, longe das disputas e conflitos entre as nações de "povos sésseis" (como eles diziam) estabelecidadas em terra firme, eram vistas apenas como locais de encontro. Os verdadeiros lares dos Empíreos eram as próprias Esferas Exploratórias, que de fato eram particularmente grandes e funcionavam mais como grandes metrópoles contidas num grande globo metálico oco, onde os Empíreos viviam de certa forma viajando sem se mover.
Além disso, os Empíreos eram uma civilização bem tolerante e com um imenso poder de assimilação, e por isso acabavam sendo definidos não por características étnicas, religiosas, ou culturais, mas por livre associação. Em princípio, qualquer pessoa que originalmente fosse membro de um dos Povos Sésseis poderia se tornar um Empíreo, se uma Esfera Exploratória concordasse em conceder cidadania a esse indivíduo. Assim sendo, ver um grupo de Empíreos era sempre ver um grupo de pessoas completamente diferentes, falando com sotaques diferentes (ainda que todos usassem a língua franca - que não surpreendentemente era chamada Empireolan - para se comunicar entre si e com membros de Povos Sésseis). Por exemplo, no grupo de Empíreos que agora descia a rampa Nussaza notou dois que poderiam perfeitamente passar por membros do Povo Ensolarado (ainda que sem a obsessão pela cor vermelha). Mas por outro lado havia também um que poderia ser um conterrâneo Ohjirense, e também mais um usando um estranho tipo de pintura facial que não pertencia a qualquer povo de que Nussaza se lembrasse - o que, para alguém interessado em Humanidades como ela, soava bastante desafiador. Nussaza imaginou que talvez um dos Empíreos mais claros (ou talvez ambos) pudessem ser naturais de Taehstum, mas os outros dois podiam ter vindo de mundos longínquos que só poderiam ser alcançados com anos de viagens pelo Empíreo.
Então, quando finalmente todos os enviados terminaram de descer do cilióptero, a Embaixatriz Teiromon aproximou-se dos visitantes e começou a falar. Sua voz de Azul - irreal, inumana e cristalina, mas ainda assim feminina e de uma extrema e graciosa musicalidade - encheu o recinto para que todos ouvissem...
Notas do Autor
Os universos ficcionais têm a propriedade de serem naturalmente explicados à medida que uma história passada neles se desenrola, e não é diferente no caso do meta-mundo ficcional do Planeta Sangue. De forma que essas minhas "Notas do Autor" devem ficar cada vez menos necessárias (ou mais desnecessárias :) à medida que esse processo avança.
Porém, neste segundo capítulo existe ainda uma quantidade razoável de elementos que gostaria de comentar.
Acho que o primeiro deles é a revelação da existência dos Azuis no meu universo ficcional. Digamos que os Azuis são a minha versão do conceito recorrente de upload existente na ficção científica trans-humanista, pós-humanista e Singularitária sendo escrita de uns dez ou vinte anos para cá. Aqui abro um parênteses para comentar que a esmagadora maioria dos nerds brasileiros infelizmente desconhece por completo esses novos subgêneros de FC, pelo simples fato de que praticamente nenhuma ficção científica recente foi traduzida para o Português. O nerd brasileiro que quer ler coisas novas tem de se forçar na marra a ler Inglês, ou então se conformar em continuar lendo traduções de Asimov e Clarke de 30 anos atrás. (Nada contra Asimov e Clarke, muito pelo contrário, mas eles são representativos de um período antigo da ficção científica, que continuou evoluindo bastante depois deles.) Mas, enfim, parando de divergir, o conceito de upload é o de que nossa mente é só informação e assim, se gravarmos essa informação corretamente, após a nossa morte um corpo novo pode ser feito e nossa mente reencarnada no mesmo. Ou, em outra variante, para que corpos, se nossas mentes podem rodar em mundos virtuais?
Aqui outro parêntese para um criticazinha que pode fazer muita gente ferver de raiva: se o Upload parece Dualismo (a crença de que a mente na verdade é uma alma imortal independente do corpo) é porque é mesmo! O Upload de fato é um "Dualismo para Nerds", refraseado com conceitos científicos de modo que os nerds possam aceitá-lo. Mas estruturalmente uma ficção científica com a idéia de upload poderia ser escrita com uma nomenclatura muito parecida com a místico-religiosa, e usando uma tecnologia fictícia e um tecnobabble que lembraria o dos Caçafantasmas, com aparelhos que capturariam almas de pessoas mortas e possibilitariam reencarná-las novamente num corpo desejado. E uma ficção científica escrita desse jeito teria basicamente a mesma dinâmica de uma usando a idéia de upload tradicional (onde por sua vez o tecnobabble envolve scanners cerebrais ou nanomáquinas capturando a "informação-alma" da pessoa passando pelo processo).
Talvez porque eu tenho essa percepção aguda de que o Upload é "Dualismo para Nerds", tenho também um certo "cinismo ficcional" em relação ao mesmo, e isso me levou a tentar imaginar um modelo de Upload diferente dos tradicionais. (Onde os tradicionais são o tal scanner cerebral ou nanomáquinas capturando a mente da pessoa e transferindo para um novo corpo biológico, robótico ou virtual.) Mas acaba que meu resultado final lembra fortemente o Kiln People, cujo autor também parecia tratar a idéia de Upload com algum "cinismo ficcional". No "Kiln People", as pessoas podem copiar suas mentes para "golems" - bonecos feitos de um material "inteligente" lembrando barro que podem ser "impressos" com a mente do original. No livro o processo é analógico existe toda uma ciência chamada "Soulistics" (a tradução horrível seria "Almística", o estudo da alma :) tratando da percepção e cópia do "campo de consciência" ou sei lá o que do original para os golems.
Aqui no Planeta Sangue preferi não entrar em tantos detalhes assim de como os Azuis são feitos - inclusive porque os Azuis são um tema periférico no livro. Preferi deixar o processo vago o suficiente para que os leitores que querem um Upload "clássico" enxerguem o mesmo ("o tal holograma morfogênico guarda informação do corpo e da mente do original e possibilitam fazer uma cópia num corpo sintético") e, o que é mais curioso, os leitores que querem um Dualismo clássico ("o holograma morfogênico ancora o CORPO ASTRAL da pessoa, que é devidamente reencarnado num corpo sintético em caso de morte") também podem enxergar isso. Mas, qualquer que seja a "interpretação", a forma final dos Azuis lembra bastante os "golems" do "Kiln People", no sentido de que os Azuis são feitos de um material inteligente misterioso (o "Plasma Mimético de Kerzuta" :) e lembram bonecos ou estátuas animados. Ah, sim, no "Kiln People" os golems tinham cores codificadas (os verdes eram os mais baratinhos, os negros tinham capacidades mentais aumentadas, etc), mas decidi fazer os Azuis, bem, azuis usando o mesmo "raciocínio mágico" por trás daqueles deuses hindus com pele azul: o azul é uma cor que lembra imediatamente a eternidade e a infinitude do céu e do mar. (Certo, sabemos que o mar e o céu não são infinitos, mas suponho que os primeiros hindus não tinham noção disso. :)
Por falar nos Azuis, também revelei neste capítulo que no meta-mundo do Planeta Sangue existem sociedades inteiras, que chamei de "Tradicionalistas", que não são pós-mortais nem imortais - em suma, são como as sociedades humanas atuais. Alguns leitores podem achar inconcebível que num mundo onde existe tecnologia para viver para sempre existam pessoas que escolham envelhecer e morrer, mas recomendo a esses leitores olharem o nosso mundo e constatarem que existem diversos grupos étnicos e sociais que recusam esse ou aquele estilo de vida ou tecnologia porque os mesmos contradizem princípios éticos, morais, filosóficos, religiosos ou simplesmente tradicionais do grupo em questão. Outro elemento que pode ter uma suspensão da descrença ruim para muitos aparece quando deixo claro que a imortalidade é em última instância insuportável: embora no meta-universo do Planeta Sangue a tecnologia possa extender indefinidamente o bom funcionamento do corpo humano, a *mente* humana continua suscetível ao tédio, e eventualmente escolhe acabar com sua própria existência para escapar a esse tédio. Acho que os leitores mais jovens em especial vão achar isso incompreensível, mas digamos que com "apenas" 36 anos de idade eu já noto que é cada vez mais difícil me surpreender ou entusiasmar com alguma coisa. Imagine então o que eu pensaria se chegasse a 360 anos? Sei lá, meu sentimento é de que, muito antes disso, continuar vivendo pareceria completamente sem razão de ser. Acho mais razoável supor uma sociedade onde, apesar da vida ser indefinidamente extensível, o suicídio e a eutanásia (para acabar com o sofrimento do tédio :) são vistos com naturalidade. Por outro lado, para outras sociedades essa aceitação do suicídio e eutanásia poderia ser vista só como um sintoma de que a pós-mortalidade não é exatamente compatível com a mente humana; daí eu também postular as sociedades Tradicionalistas. Enfim, desconfio que imortalidade só deve ser perfeitamente casável com uma sociedade de criaturas cujas mentes estejam além da condição humana.
E é aí que os Vampiros entram no meu meta-mundo ficcional... Eu sei, eu sei, eles estão demorando a aparecer, e acho que realisticamente só no Capítulo 4 o primeiro vampiro deve aparecer na historinha. :)
Ah, sim, e por último acho que vale a pena falar um pouquinho do (hihihihi) "Empíreo", que essencialmente é mais uma versão do "Hiperespaço" tão comum na ficção científica, ainda que como alucinei nas notas do primeiro capítulo no meu meta-mundo ficcional as "viagens empíreas" só são possíveis entre mundos de universos diferentes, afim de evitar os terríveis paus da viagem superluminal entre dois pontos do mesmo contínuo espaço-temporal; além disso optei por fazer as Esferas (que também poderiam ser chamadas de "naves empíreas") irem diretamente do oceano de um mundo para o de outro, de um jeito que na minha percepção delirante deve evitar violações da conservação da matéria-energia, e também evita o passo narrativo desnecessário (mas por algum motivo comum em boa parte das ficções científicas) da nave ter de ir ao espaço para depois mergulhar no Hiperespaço. De qualquer forma, alguém pode se perguntar porque chamei esse "espaço exótico" ficcional de "Empíreo" em vez de usar um nome comparativamente "normal" igual Hiperespaço, e a resposta é que "Empíreo" é uma referência à Divina Comédia: lá o Céu é dividido em vários níveis, correspondentes às esferas do (hihihihihihi) Sistema Geocêntrico, com níveis progressivamente mais elevados de almas, santos e anjos quanto mais superior o nível. Além do último nível (o das estrelas fixas, se não me engano) existia o Empíreo, a região além da própria Existência, habitada (ou preenchida?) por Deus. Me pareceu um nome bastante apropriado para um "espaço exótico" ficcional com propriedades inconcebíveis... ;-)