sábado, 27 de dezembro de 2008

Capítulo 2: Os Mensageiros


Após muitos minutos percorrendo o labirinto tridimensional de corredores, elevadores e bondes do interior da Esfera, Nussaza e Nobur finalmente chegaram ao Hangar 2 - e até antes de adentrarem o compartimento a intensa celeuma que se ouvia já no corredor de acesso indicava que havia uma pequena multidão ali, e possivelmente a Profa. Arieve e o Dr. Dehsmen estavam entre os últimos a chegar. De fato, lá dentro Nussaza constatou que as principais pessoas a bordo já estavam no Hangar. Em particular, lá estavam a Comandante Nevihvia Ujoara, que havia contatado Nobur; Loskar Kerien, o Diretor Científico da Missão; e, finalmente, quem de fato comandava todos os aspectos da Expedição, a toda-poderosa Embaixatriz Itinerante Veiliora Teiromon.

Ao contrário de Nussaza e Nobur, naturais do Continente Austral, o mais populoso de Ohjiren, a Comandante Ujoara vinha do Continente Oriental, e isso ficava bem patente pelo seu tipo racial: pele escura, mas de um marrom-chocolate e não definitivamente preta, cabelos lisos negro-azulados cuidadosamente arrumados num coque e grandes olhos castanho-escuros sempre muito maquiados com sombras (como parecia ser moda atualmente entre mulheres Orientais) brilhando num rosto de traços finos. Ujoara parecia ter regulado seu cronobiotipo para talvez uns trinta e poucos anos, seguindo a tradição ditando que pessoas em cargos mais altos deviam parecer um pouco mais velhas. É claro que isso muitas vezes não tinha qualquer correlação com a idade cronológica, real. Por exemplo Nussaza sabia que Ujoara, que parecia mais velha, era uma criança de apenas oitenta e sete anos-padrão, enquanto que a própria Nussaza, a despeito de sua ilusória juventude, já atingia a idade consideravelmente mais avançada de cento e vinte e oito anos. Oh, bem, algumas pessoas subiam muito alto muito cedo na vida mesmo...

Já o Diretor Kerien devia estar regulado para um cronobiotipo parecido com o de Ujoara, mas para Nussaza ele sempre parecia mais... velho. Provavelmente era seu eterno ar sisudo, severo, rabugento e mesmo carrancudo. E certamente a impressão de maior velhice advinda de rabugice não ocorria apenas na percepção de Nussaza: embora todos respeitosamente se dirigissem a ele como "Diretor Kerien" em sua presença, pelas costas o chamavam simplesmente de "o Velho", ou às vezes (no caso de algum eventual atrito com o Diretor) "o Velho Ranzinza". Nussaza tomava isso como uma evidência anedótica favorável ao ditado "a idade é um estado de espírito", quase desconhecido em um Mundo Pós-Mortalista como Ohjiren, mas bastante comum em Mundos Tradicionalistas, onde culturalmente as pessoas encaravam o envelhecimento e a morte como uma parte indispensável da vida humana. De qualquer forma, o tipo racial de Kerien era bem típico do Continente Hiperbóreo: baixo, pele cor-de-bronze, cabelos escuros lisos, pesados e brilhantes, e olhos puxados.

Finalmente, considerações sobre cronobiotipo e raça eram meio que inaplicáveis à Embaixatriz Teiromon, simplesmente porque a mesma não era mais exatamente... humana. Veiliora Teiromon era uma Azul.

As técnicas de rejuvenescimento e regeneração podiam prolongar indefinidamente a vida biológica - ainda que, na prática, ninguém aguentasse viver mais que uns duzentos ou trezentos anos e recorresse sem pestanejar ao suicídio ou à eutanásia quando chegava àquele estado em que coisas realmente novas e interessantes deixavam de existir, porque tudo o que existia para ser experimentado ou pensado já o havia sido, e o que ainda existia de desconhecido parecia não valer o esforço para conhecer. De qualquer forma, mortes por acidente, assassinato ou (muito raramente) por alguma doença nova e ainda sem cura eram possíveis antes desse limiar da Morte Voluntária.

Mas, se o corpo biológico original era perdido, um ser com as mesmas memórias e pensamentos podia ser recriado. Vários pós-mortais gravavam periodicamente hologramas morfogênicos de si mesmos; alguns até dormiam em sarcófagos morfogênicos para garantir que seus seres fossem backupeados com frequencia diária. Assim, se (digamos) algum horrível acidente acontecesse e destruísse além de qualquer possibilidade de reparo o corpo biológico do pós-mortal, um Azul seria instanciado a partir de seu holograma morfogênico.

Nos primórdios das tecnologias pós-mortais, aparentemente tentou-se o que seria uma reencarnação de fato - o crescimento de um novo corpo biológico, replicando o original perdido, e em cujo cérebro as memórias e pensamentos do original seriam reimplantados. Infelizmente, o complexo e caótico processo ontogênico de um corpo vivo provou ser basicamente indomável, em particular com o cérebro se formando com uma topologia de neurônios que jamais era exatamente a do original, o que tornava o problema do mapeamento de informações da configuração original para a nova computacionalmente intratável.

A solução encontrada foi então criar um novo corpo *bionítico*, e não biológico. Após séculos de experimentação com vários tipos de géis bioníticos morfogenoreativos, chegou-se ao Plasma Mimético de Kerzuta, uma gosma diáfana azul-turquesa que se moldava perfeitamente a um holograma morfogênico, replicando com funcionalidades de nível celular o corpo - e a mente - do original a partir do qual o holograma foi gravado.

O resultado era um Azul - um ser andante, falante e pensante com todas as memórias e demais processos e estados mentais do original, feito à sua imagem e semelhança, e que para quase todos os fins práticos sociais e legais de fato era o original. Embora, é claro, o fato dos Azuis transcenderem a biologia fizessem com que essa equivalência não fosse - não pudesse - ser perfeita. Embora tivessem o sentido do paladar, os Azuis não comiam: em vez disso, recarregavam suas células bioníticas "dormindo" (ou entrando num estado de baixa atividade) num campo energético; ocasionalmente recebiam também mais infusões de plasma mimético para reposição de material desgastado. Os Azuis não se reproduziam, a não ser no sentido bizarro de que podiam, se quisessem, criar cópias perfeitas - ao nível mental - de si mesmos preenchendo com mais plasma mimético um holograma morfogênico atualizado. Finalmente, os Azuis não tinham simulações lá muito fiéis de sistemas hormonais, e assim suas percepções sexuais e emocionais podiam ser perturbadoramente ausentes ou irreconhecivelmente diferentes da norma humana.

Tudo isso parecia contribuir para uma estranha sensação de "ausência do eu", usando um termo que os psicólogos especializados em Azuis gostavam. Quando Nussaza se enveredava por essas reflexões - e isso frequentemente acontecia na presença da Embaixatriz Teiromon - sempre acabava por se lembrar das palavras do clássico "A Recursão Infinita da Simulação do Ego", de Shandreale Tossan, onde o famoso escritor registrou suas impressões após se tornar um Azul. Em certo momento ele escreveu "Não sou Shandreale, sou uma estátua de vidro azul maleável que, do alto da soberba fria de suas reflexões, pensa ser Shandreale".

Eventualmente, Shandreale Tossan colocou seu sarcófago morfogênico e a si mesmo dentro de um Despolarizador, que então foi ativado. O que era o corpo Azul de Shandreale derreteu novamente para uma massa informe de gel translúcido (guardado até os dias de Nussaza em um frasco exposto ao público - uma urna funerária para Azuis, por assim dizer - num magnífico memorial no Continente Hiperbóreo), e o padrão gravado no Sarcófago foi apagado. Shandreale Tossan, o poeta e escritor, estava finalmente, totalmente, completamente morto, sem qualquer possibilidade de ressurreição.

Mas suas palavras continuavam vivas.

No caso da Embaixatriz Teiromon, as esquisitices emocionais e psicológicas que costumavam afetar os Azuis aparentemente não se manifestaram - ou, se existiam, ao menos eram muito bem disfarçadas. (Nussaza acreditava especialmente na segunda possibilidade, ao se lembrar de um daqueles curiosos jantares em companhia da Embaixatriz, onde a mesma não comia nada, apenas levava porções ínfimas de um ou outro prato à boca para degustação. Nessa ocasião, Deiliora Teiromon havia feito a enigmática observação de que "interpretava a si mesma muito bem"...) De qualquer forma, ainda assim algo em sua postura e forma de movimentar era bem pouco humano - Nussaza sempre tinha a impressão de estar vendo uma exótica estátua de vidro azul diáfano, que estranhamente estava vestida, majestosamente imóvel, brilhando magnificamente sob a luz artificial branco-azulada difusa predominante no interior da Esfera. Mas então a estátua se movia com uma fluidez completamente incongruente com sua aparência vítrea - e que ao mesmo tempo parecia regular demais para um ser vivo.

Como era baseada num holograma morfogênico, a "estátua" havia sido feita à imagem e semelhança da Teiromon original, e essa forma era a de uma mulher bonita, de traços refinados ao ponto de soarem aristocráticos, com corpo de violão e cujo original devia ter morrido usando um cronobiotipo de uns trinta anos. (Embora a ausência de um tom de pele e uma opacidade humanos tornassem difíceis essas considerações de idade aparente.) A grande peculiaridade na qual ela provavelmente diferia muito da original era a completa ausência de cabelos ou pelos de qualquer espécie - como essas escrescências não eram material vivo, não eram capturadas pelo holograma morfogênico. Alguns Azuis contornavam essa limitação da técnica implantando artificialmente cabelos, sobrancelhas e demais excrescência capilares, mas Teiromon optou por um visual "natural" (seja lá qual fosse a aplicação desse adjetivo a um Azul), totalmente desprovida de fios capilares de qualquer tipo.

Existia um bom motivo para a Embaixatriz Teiromon ser tão fascinante para Nussaza - ou, a propósito, para qualquer outro humano biológico a bordo da Esfera. Azuis vivendo entre humanos de carne e osso eram bastante raros em Ohjiren. Mesmo em várias civilizações pós-mortalistas como a do mundo natal de Nussaza, de alguma forma obscura a cultura e a sociedade não absorviam bem entidades nitidamente pós-humanas como os Azuis. Esperava-se que, após renascer como Azul, um ex-humano se mudaria para um dos Mundos Imortais - onde por um ou outro motivo a população convergia para uma maioria de Azuis. Ou, mais frequentemente até, a quase totalidade da população era de Azuis, já que frequentemente os Mundos Imortais eram impróprios para a vida humana. Afinal, os Azuis não precisavam de ar, água ou comida, e funcionavam em uma gama de temperaturas mais ampla. Vários dos mundos que os Empíreos encontravam e que eram imprestáveis como empreendimento imobiliário para humanos por outro lado pareciam acolhedores para a percepção já um tanto inumana dos Azuis. Quaisquer que fossem as condições do Mundo Imortal escolhido, porém, um Azul que decidisse migrar para o mesmo de certa forma estava aceitando uma "morte simbólica", desligando-se de sua sociedade, amigos, família e indo "para um lugar melhor".

Mas não no caso de Veiliora Teiromon. Antes do acidente que destruiu irrecuperavelmente seu corpo biológico original, ela já havia se tornado importante demais, por tempo demais, na política de Ohjiren. Os rumores eram de que os planos de Teiromon de fato eram se mudar para um Mundo Imortal, mas várias figuras políticas importantes da época imploraram para ela ficar - por contrário que isso fosse à cultura e por bizarro (e talvez "errado") que isso corresse o risco de parecer na percepção popular. Talvez sua migração gradual para o campo da política externa, e em particular para a Expedição, que a manteria separada de Ohjiren por anos, fossem um "termo de compromisso" entre ela continuar servindo ao seu planeta e ao mesmo tempo se afastar do mesmo...

Finalmente, havia ainda um segundo motivo - mais pessoal - para Nussaza ser tão perturbada por Azuis. Com mais de um século de idade, Nussaza ainda não havia providenciado um único holograma morfogênico sequer. Se ela morresse, seria para sempre. Nussaza invariavelmente se sentia perturbada com a idéia de se tornar uma Azul, ou - dependendo de como se definia a identidade do eu - a idéia de ter uma imitação artificial de si mesma com os mesmos pensamentos e memórias após sua morte biológica. Mas ao mesmo tempo ela não se sentia preparada para uma morte definitiva...

As intermináveis, labirínticas elucubrações de Nussaza em torno dos Azuis finalmente foram interrompidas por um evento externo. As grandes portas de correr do hangar começaram a se abrir, enchendo o recinto com um som metálico cavernoso. Uma leve brisa carregando a atmosfera exterior desagradavelmente viciada (e com um sutil cheiro de mar que Nussaza só notou naquele momento) invadiu o compartimento - ao que parecia, o ar lá fora continuava bastante parado, mesmo na altura daquele hangar, que era próximo ao pólo superior da Esfera, mais alto ainda que a pequena plataforma de observação onde Nussaza e Nobur estavam minutos atrás.

Lá fora, o panorama continuava um jogo sombrio de mar e nuvens escuras e os escarlates e vinhos do crepúsculo estático e eterno do grande sol vermelho. Porém, um pontinho brilhante - ficando cada vez mais brilhante, ou talvez cada vez mais próximo - se destacava ao longe, acima do horizonte colorido de vermelho e preto. Nobur - que havia entrado em um de seus transes em comunhão com a Nuvem enquanto Nussaza entrava em suas espirais de pensamentos sobre os Azuis - deu então sinais de vida, comentando:

- Ah, lá está o cilióptero do nosso, hum, comitê de boas vindas. O ponto brilhante no céu, vê? De acordo com o que acabei de checar na Central de Rastreamento, é um modelo grande que deve chegar em mais uns dois minutos.

De fato, em mais algum tempo era possível ver que o ponto brilhante era mesmo um objeto de formas arredondadas se aproximando, num ângulo que refletia o sol aparentemente em sua parte inferior. Com mais alguma aproximação, o objeto revelou-se realmente como um cilióptero especialmente grande, talvez para umas vinte pessoas - a forma parecia um intermediário entre uma arraia e um cogumelo, afim de conseguir alguma sustentação aerodinâmica planando e contrabalançar a relação área-superfície já um tanto desfavorável, que fazia com que o ar movido pela vibração dos bilhões de cílios micromecânicos cobrindo seu casco esterior fosse quase que só o suficiente para erguer a nave do chão. Com mais aproximação ainda, Nussaza notou que, além de grande, aquele era um modelo sofisticado: não existiam portas ou janelas visíveis, indicando que tudo ficava selado com soldas moleculares reversíveis; e os cílios propulsores deviam ser de um tipo particularmente fino, pois não havia qualquer sinal de "aveludamento" da superfície denunciando a presença dos mesmos. Por isso mesmo o cilióptero lembrava uma poça de mercúrio deformada num volume simétrico e vagamente aerodinâmico, formando uma superfície espelhada contínua que funcionava tão bem para refletir aquele incômodo clarão vermelho do sol local.

Finalmente, a aeronave aproximou-se o suficiente para que o vórtice de vento que a sustentava invadisse o hangar. Alguns dos presentes discretamente tentaram acomodar com as mãos roupas e cabelos mais suscetíveis a movimentações bruscas do ar. (Como era de se esperar, a Embaixatriz Teiromon, desprovida de excrescências capilares e usando um vistoso vestido colado, continuou impávida como uma estátua de vidro azul.) Segundos depois da ventania, o próprio cilióptero começou a adentrar o hangar, projetando uma sombra deslizante suave sobre o piso e brilhando agora num fulgor branco-azulado sob a luz artificial típica do interior da Esfera.

Então, Nussaza notou um toque de sofisticação a mais: a ventania começou a diminuir e finalmente parou, mas ao mesmo tempo a aeronave continuava pairando alguns palmos acima do piso metálico.

- Hum, um mecanismo de "pouso sem toque" por levitação magnética - concluiu Nobur, acrescentando em tom desdenhoso: - Interessante, mas caro e pouco eficiente.

Enquanto a porta do hangar voltava a se fechar, o contorno oval de uma porta apareceu do nada na parte frontal do cilióptero, revelado pela desativação de sua solda molecular reversível. Logo a porta se abaixou, revelando uma rampa engenhosamente articulada em sua superfície interior.

Finalmente, as primeiras pessoas começaram a descer a rampa.

Com um certo desapontamento, Nussaza notou que essas primeiras pessoas eram Humanas, e não Canimórficas. Um grupo de talvez meia dúzia, todos homens, todos muito claros - louros e ruivos, e mesmo um Platinado que chegava a resplandescer sob a iluminação interior da Esfera - e todos vestidos de vermelho-sangue vivíssimo, no que parecia um uniforme com um quê de marcial. A observação atenta de Nussaza no entanto logo foi porém novamente interrompida pela voz de Nobur - mas agora chegando com a distorção ecoante e fantasmagórica proposital, bem como a bizarra sensação de estar vindo de dentro, características de uma comunicação fonotelepática - dizendo:

[Quem são essas pessoas fantasiadas de pimentão vermelho?]

Obviamente não era o tipo de pergunta mais diplomática do mundo, e consequentemente não muito recomendada para ser feita em voz alta. Além disso, seria impolido para expedicionários de segundo escalão como Nussaza e Nobur tagarelarem durante um encontro envolvendo seus superiores; e Nussaza sentia que haveria muito o que tagarelar durante aquela cerimônia. Logo, sua resposta fluiu pelo mesmo canal fonotelepático:

[Não havia notado até agora que o senhor tem vestígios de pendor para o humor, Dr. Dehsmen. Mas, respondendo à sua pergunta, esses são representantes do Governo Leilsonehr. Conforme talvez fosse de se esperar de um povo que vive sob um dia eterno produzido por um sol vermelho, eles têm uma adoração pela cor vermelha que para nós que viemos de fora pode parecer até meio obsessiva ou mesmo doentia. Ah, sim, se você reparar bem verá que existe um pequeno detalhe nesse uniforme que eles usam representando o próprio sol vermelho, ainda que seja um pouco difícil de ver porque é só um contorno dourado fino desenhando o círculo solar e uma coroa de chamas estilizadas ao seu redor.]

[Ah, sim, notei. É claro porém que dizer que o sol deste mundo é vermelho é quase uma liberdade poética. As assim-chamadas "anã vermelhas" brilham com uma temperatura de cerca de três mil graus, como uma lâmpada incandescente, e assim a rigor a visão humana percebe a luz como amarelada. Porém, Taehstum está próximo ao limite interno da zona habitável de seu sol, e de fato o centro do Hemisfério Diurno forma a chamada "Zona Tórrida": é quente demais para suportar vida humana. Assim, na prática só a zona do hemisfério diurno até uns trinta graus do terminador, a linha separando o dia da noite, é habitável, formada por vários tipos de biomas tropicais. Todo o Povo Ensolarado vive nessa faixa, e então acontece um efeito adicional que realmente torna o sol muito vermelho: interferência atmosférica. Eles estão numa eterna zona crespuscular, com a luz solar entrando em ângulo na atmosfera e avermelhando-se com difração por partículas de poeira em suspensão. Sóis de todas as classes ficam avermelhados com esse efeito do crepúsculo, mas no caso de um sol como o de Taehstum, que de fato tem o pico de emissão de luz visível na faixa do vermelho, o efeito é soberbo, com todo o céu se enchendo de luz muito, muito vermelha, como uma inundação de sangue luminoso.]

Nussaza espantou-se ao ouvir o circunspecto Dr. Dehsmen usando uma linguagem estranhamente dramática para descrever um fenômeno natural. Aliás, mais estranho que isso: ele estava fazendo um julgamento apaixonado sobre a beleza desse fenômeno. Será que exposição constante àquele crespúsculo eterno e berrantemente vermelho começava a afetar a mente das pessoas? Mas ela e Nobur até agora não deviam ter sofrido nem meia hora de exposição. No entanto, Nussaza notou que ela mesma havia experimentado uma estranha reação emocional ao crepúsculo sem fim de Taehstum, aparentemente oposta à de Nobur: para a Profa. Arieve, a visão era lúgubre, opressiva e aterradora. Em todo caso, completamente ignorante da reação de Nussaza, Nobur prosseguia transmitindo, inclusive agora mudando ligeiramente de assunto:

[Outra coisa que chama a atenção é a brancura deles. O potente sol branco de nossa amada Ohjiren meio que exige pessoas de pele muito escura como a nossa, mas aqui, onde quase não existe radiação ultravioleta... É quase difícil de acreditar que os vampiros têm a pele ainda mais branca, na verdade colorida por um pigmento branco subjacente de função ignorada. Aliás, se repararmos bem, a pele desses Ensolarados não é exatamente branca, mas sim levemente rosada. É na verdade a cor do sangue fluindo sob a pele transparecendo levemente através desta. Hum, será que pessoas de pele tão clara assim parecem mais saborosas para um vampiro?]

Nussaza não transmitiu uma resposta - ou melhor, sua resposta a essas estranhas curiosidades do Dr. Dehsmen foram um rolar de olhos. Felizmente, Nobur novamente mudou o foco de suas observações sobre os Ensolarados:

[Mas possivelmente a surpresa mais fascinante é a presença de uma pessoa velha, ou talvez seja melhor dizer envelhecida, entre eles! O senhor do meio. Não é um pouco estranho uma pessoa assim num cargo desses?]

[Você está pensando com uma ótica preconceituosa Ohjirense] - começou Nussaza a explicar, pacientemente. - [Os Ensolarados são um povo Tradicionalista, em oposição à nossa cultura Pós-Mortalista. Eles acreditam que a extensão indefinida da juventude e da vida é contrária à natureza humana. Aceitam medidas comportamentais com dieta, exercícios, estilo de vida em geral, para mitigar efeitos do envelhecimento, mas se recusam a mexer na própria maquinaria celular e genética para cortar o mal pela raiz, como nós fazemos. Aliás, a questão toda é que culturalmente eles não enxergam a velhice como uma doença degenerativa, mas sim como parte de viver uma vida humana. Mas, enfim, em Ohjiren basicamente o único povo Tradicionalista que conhecemos são os milhões de imigrantes que chegam de Kukonsuës para trabalhar em diversos tipos de serviços de baixa qualificação e mal-remunerados, o que talvez explique seu aparente preconceito de que uma pessoa envelhecida não poderia ocupar um alto cargo; de fato isso é inaudito em Ohjiren, onde a elite do planeta, da qual fazemos parte, é formada pelos nativos pós-mortais para os quais deixar a velhice tomar conta é socialmente inaceitável. Aliás, percebo em Ohjiren um ciclo social vicioso: a elite vê que a população pobre de imigrantes e seus descendentes é pobre, vê que existem velhos nessa população, associa velhice com pobreza e sente seus valores Pós-Mortais ainda mais reforçados; e por outro lado os imigrantes Kukonsuessis percebem boa parte dessa reação da elite nativa como arrogância e soberba, e sentem isso como um incentivo para abraçar mais ainda seus valores Tradicionalistas.]

Como muitas vezes acontecia, Nobur parecia pronto para aceitar as críticas de Nussaza sem grande relutäncia, como demonstrou pelo seu próximo comentário:

[Outro aspecto interessante que enxergo na sua análise é o fato de Kukonsuës ter um sol primário laranja, e ser habitado por raças mais claras. Os Ensolarados lembram fisicamente os Kukonsuessis inclusive nesse aspecto também, evocando os conhecidos preconceitos contra gente clara alimentados por nós, Ohjirenses "legítimos"...]

[Idéias e reações um tanto exóticas provocadas pelas simples diferenças entre as pessoas existem em qualquer lugar] - adicionou Nussaza em tom contemporizador. - [Aqui em Taehstum também existe um tipo de conflito étnico-cultural entre os Ensolarados e os Vampiros que lembra vagamente aquele entre os Ohjirenses e os Kukonsuessis. Mais especificamente, a cultura Tradicionalista dos Ensolarados provavelmente é reforçada pela relativa proximidade dos Vampiros. Estes são eternos, imutáveis, quase indestrutíveis e claramente mais que humanos. Com vizinhos como esses, os Ensolarados parecem se sentir tentados a exarcerbar suas características humanas, procurando enxergá-las mais como uma força que como uma fraqueza.]

Àquela altura, um novo grupo de pessoas desceu do cilióptero - e dessa vez não eram "pessoas" na definição antropogênica que Nussaza normalmente usava.

[Lobisomens!] - Exclamou Nussaza pelo canal fonotelepático. Interessantemente, houve um certo ruído de vozes indistinto na multidão, indicando que algumas pessoas simplesmente não conseguiram conter uma exclamação vocal, ou talvez movimentos mais sutis (mas não totalmente silenciosos), como suspiros muito profundos.

De qualquer forma, lá estavam eles: uns três, não, quatro espécimes de Canimórficos de Taehstum. Uma olhada instantânea sem prestar muita atenção poderia sim dar vagamente a impressão de homens com cabeças de cachorro - o que talvez jutificasse a alcunha popular de "lobisomens" - mas essa primeira interpretação visual desatenta desmoronava com mais uns poucos segundos de observação. Logo ficava claro que, embora os Canimórficos fossem bípedes, o corpo deles como um todo era bem distanciado do de um humano.

A propósito, as alegadas "cabeças de cachorro" apresentava alguns detalhes um tanto incomuns para canídeos, mas ainda assim - talvez devido à imensa diversidade de raças de cães existentes - lembravam cachorros. A testa parecia alta e pronunciada demais e as orelhas pareciam pequenas e no lugar "errado", baixas demais. De qualquer modo, os focinhos eram pronunciadamente caninos, na verdade até lupinos: compridos, ameaçadores, com pontas de dentes pontiagudos saindo por entre os lábios negros. Um deles estava de boca aberta e com uma língua rosada enorme para fora, arfando como qualquer cachorro comum.

Mas o corpo não lembrava nem humanos e nem canídeos. Ao contrário dos humanos, que andam como "torres", verticalizados e equilibrando-se temerariamente apenas sobre os dois pés, os Canimórficos andavam com a coluna praticamente na horizontal, contrabalançando o peso do torso por meio de uma massiva cauda. Assim, seus corpos lembravam mais os de dinossauros bípedes, ou talvez cangurus. Correspondentemente, os braços pareciam um tanto curtos em relação ao resto do corpo, e pareciam ser preferencialmente mantidos recolhidos, dobrados. As mãos pareciam longas e desproporcionais demais para ter alguma similaridade com as humanas, mas possuíam polegares oponíveis. Os dedos terminavam em unhas longas de corte arredondado, como as de cães.

Os pés das criaturas estavam visíveis e assim era possível ver que as unhas por lá eram do mesmo tipo. A propósito, a roupa que eles usavam era uma única peça metálica, uma espécie de armadura multi-articulada (e aparentemente leve) que cobria suas costas, peito e barriga, deixando os braços, pernas e cauda completamente livres. O corte estratégico das armaduras também cobria o sexo das criaturas, e Nussaza pensou que talvez aquilo fosse mais uma consideração com os humanos que algum tipo de tabu de nudez dos próprios Canimórficos. Surpresa, Nussaza constatou que ficaria constrangida se visse uma das criaturas completamente nua, com os genitais à mostra...

[Você tinha razão, Nobur, eles não lembram bem nem cachorros nem homens] - Nussaza finalmente comentou.

[De fato. No entanto, devo dizer que nitidamente lembram animais domésticos.]

[Como assim?]

[Veja por exemplo o Canimórfico da direita, ele é malhado com um padrão de branco e preto. Já o da esquerda tem orelhas caídas. São padrões comuns a várias espécies de animais domésticos, mas não são encontrados em animais silvestres. Interessantemente, esse padrão vale até para formas de vida alienígenas, não-terragênicas: por exemplo, em nossa amada Ohjiren os turupikus vivendo em seu habitat natural são listrados em um padrão que produz uma certa camuflagem com as florestas de alga vermelha; mas os turupikus domesticados, que vêm sofrendo seleção artificial há séculos e séculos, desenvolveram um padrão malhado inexistente no meio natural...]

[ ... E esse padrão malhado ficou tão característico que se pedirmos a uma criança de Ohjiren (provavelmente uma do litoral do Continente Austral, onde os turupikus crescem melhor) para desenhar um turupiku, ela desenhará um turupiku doméstico, malhado] - completou Nussaza, pensativa.

[Na verdade a maior parte das crianças, ou mesmo dos adultos, sequer tem consciência de que existe uma espécie selvagem de turupiku que já existia centenas de milhões de anos antes de humanos chegarem a Ohjiren] - retificou Nobur.

[Bom, de qualquer forma, essa aparência domesticada dos Canimórficos corresponde bem ao que eu esperaria de uma espécie criada artificialmente.]

[E criada artificialmente por uma meta-espécie artificial. Não é um lindo exemplo de recursão?]

Nussaza aquiesceu levemente com a cabeça, mas de fato não estava certa do significado de "recursão"; porém, sentindo que esse significado devia ter relação com mais uma das fascinações matemáticas irritantes do Dr. Dehsmen, preferiu não consultar a palavra na Nuvem. De quaquer forma, mais um grupo de pessoas - o último - emergiu do cilióptero.

[Eis que surgem nossos amigos onipresentes, os Empíreos] - anunciou Nobur com uma escolha de palavras que poderia soar levemente jocosa se tivesse vindo de outra pessoa.

Porém, Nobur era demasiadamente sério para suas palavras serem interpretadas assim, e além do mais os Empíreos eram mesmo onipresentes, de certa forma. Eles estavam em todos os mundos habitados. Na verdade, os Empíreos eram os *responsáveis* pela existência de uma infinidade de mundos habitados.

Os Empíreos deviam seu nome, obviamente, ao Empíreo, a "dimensão" (na falta de palavra melhor) além dos universos, do tempo, do espaço, da realidade, da própria Existência, por onde as Esferas passavam em suas viagens entre os mundos. Os Empíreos gastavam possivelmente mais tempo viajando pelo Empíreo que estacionados em contínuos espaço-temporais normais, daí se chamarem pelo próprio nome de seu "meio natural".

Sem as Esferas Exploratórias dos Empíreos, capazes de viajar livremente pelo Empíreo sem ficarem restritas aos mundos já ancorados ao Hiperplano, não existiria um contínuo fluxo de novos planetas e luas habitáveis sendo descobertos, e então também ancorados e assim abertos para colonização usando as Esferas comuns que só tinham graus de liberdade para se movimentar pela Hipersuperfície.

Dado que grande parte do "modelo de negócios" profundamente "imobiliário" dessa civilização envolvia viajar e viajar pelo Empíreo, tanto em busca de mundos virgens como para fazer manutenções nas Âncoras dos mundos habitados, os Empíreos apresentavam uma série de características pouco usuais.

Os próprios mundos que eles descobriam e mantinham ancorados na Hipersuperfície eram para eles apenas pontos de passagem transitórios, e mesmo as cidades flutuantes que mantinham em águas internacionais desses mundos, longe das disputas e conflitos entre as nações de "povos sésseis" (como eles diziam) estabelecidadas em terra firme, eram vistas apenas como locais de encontro. Os verdadeiros lares dos Empíreos eram as próprias Esferas Exploratórias, que de fato eram particularmente grandes e funcionavam mais como grandes metrópoles contidas num grande globo metálico oco, onde os Empíreos viviam de certa forma viajando sem se mover.

Além disso, os Empíreos eram uma civilização bem tolerante e com um imenso poder de assimilação, e por isso acabavam sendo definidos não por características étnicas, religiosas, ou culturais, mas por livre associação. Em princípio, qualquer pessoa que originalmente fosse membro de um dos Povos Sésseis poderia se tornar um Empíreo, se uma Esfera Exploratória concordasse em conceder cidadania a esse indivíduo. Assim sendo, ver um grupo de Empíreos era sempre ver um grupo de pessoas completamente diferentes, falando com sotaques diferentes (ainda que todos usassem a língua franca - que não surpreendentemente era chamada Empireolan - para se comunicar entre si e com membros de Povos Sésseis). Por exemplo, no grupo de Empíreos que agora descia a rampa Nussaza notou dois que poderiam perfeitamente passar por membros do Povo Ensolarado (ainda que sem a obsessão pela cor vermelha). Mas por outro lado havia também um que poderia ser um conterrâneo Ohjirense, e também mais um usando um estranho tipo de pintura facial que não pertencia a qualquer povo de que Nussaza se lembrasse - o que, para alguém interessado em Humanidades como ela, soava bastante desafiador. Nussaza imaginou que talvez um dos Empíreos mais claros (ou talvez ambos) pudessem ser naturais de Taehstum, mas os outros dois podiam ter vindo de mundos longínquos que só poderiam ser alcançados com anos de viagens pelo Empíreo.

Então, quando finalmente todos os enviados terminaram de descer do cilióptero, a Embaixatriz Teiromon aproximou-se dos visitantes e começou a falar. Sua voz de Azul - irreal, inumana e cristalina, mas ainda assim feminina e de uma extrema e graciosa musicalidade - encheu o recinto para que todos ouvissem...




Notas do Autor


Os universos ficcionais têm a propriedade de serem naturalmente explicados à medida que uma história passada neles se desenrola, e não é diferente no caso do meta-mundo ficcional do Planeta Sangue. De forma que essas minhas "Notas do Autor" devem ficar cada vez menos necessárias (ou mais desnecessárias :) à medida que esse processo avança.

Porém, neste segundo capítulo existe ainda uma quantidade razoável de elementos que gostaria de comentar.

Acho que o primeiro deles é a revelação da existência dos Azuis no meu universo ficcional. Digamos que os Azuis são a minha versão do conceito recorrente de upload existente na ficção científica trans-humanista, pós-humanista e Singularitária sendo escrita de uns dez ou vinte anos para cá. Aqui abro um parênteses para comentar que a esmagadora maioria dos nerds brasileiros infelizmente desconhece por completo esses novos subgêneros de FC, pelo simples fato de que praticamente nenhuma ficção científica recente foi traduzida para o Português. O nerd brasileiro que quer ler coisas novas tem de se forçar na marra a ler Inglês, ou então se conformar em continuar lendo traduções de Asimov e Clarke de 30 anos atrás. (Nada contra Asimov e Clarke, muito pelo contrário, mas eles são representativos de um período antigo da ficção científica, que continuou evoluindo bastante depois deles.) Mas, enfim, parando de divergir, o conceito de upload é o de que nossa mente é só informação e assim, se gravarmos essa informação corretamente, após a nossa morte um corpo novo pode ser feito e nossa mente reencarnada no mesmo. Ou, em outra variante, para que corpos, se nossas mentes podem rodar em mundos virtuais?

Aqui outro parêntese para um criticazinha que pode fazer muita gente ferver de raiva: se o Upload parece Dualismo (a crença de que a mente na verdade é uma alma imortal independente do corpo) é porque é mesmo! O Upload de fato é um "Dualismo para Nerds", refraseado com conceitos científicos de modo que os nerds possam aceitá-lo. Mas estruturalmente uma ficção científica com a idéia de upload poderia ser escrita com uma nomenclatura muito parecida com a místico-religiosa, e usando uma tecnologia fictícia e um tecnobabble que lembraria o dos Caçafantasmas, com aparelhos que capturariam almas de pessoas mortas e possibilitariam reencarná-las novamente num corpo desejado. E uma ficção científica escrita desse jeito teria basicamente a mesma dinâmica de uma usando a idéia de upload tradicional (onde por sua vez o tecnobabble envolve scanners cerebrais ou nanomáquinas capturando a "informação-alma" da pessoa passando pelo processo).

Talvez porque eu tenho essa percepção aguda de que o Upload é "Dualismo para Nerds", tenho também um certo "cinismo ficcional" em relação ao mesmo, e isso me levou a tentar imaginar um modelo de Upload diferente dos tradicionais. (Onde os tradicionais são o tal scanner cerebral ou nanomáquinas capturando a mente da pessoa e transferindo para um novo corpo biológico, robótico ou virtual.) Mas acaba que meu resultado final lembra fortemente o Kiln People, cujo autor também parecia tratar a idéia de Upload com algum "cinismo ficcional". No "Kiln People", as pessoas podem copiar suas mentes para "golems" - bonecos feitos de um material "inteligente" lembrando barro que podem ser "impressos" com a mente do original. No livro o processo é analógico existe toda uma ciência chamada "Soulistics" (a tradução horrível seria "Almística", o estudo da alma :) tratando da percepção e cópia do "campo de consciência" ou sei lá o que do original para os golems.

Aqui no Planeta Sangue preferi não entrar em tantos detalhes assim de como os Azuis são feitos - inclusive porque os Azuis são um tema periférico no livro. Preferi deixar o processo vago o suficiente para que os leitores que querem um Upload "clássico" enxerguem o mesmo ("o tal holograma morfogênico guarda informação do corpo e da mente do original e possibilitam fazer uma cópia num corpo sintético") e, o que é mais curioso, os leitores que querem um Dualismo clássico ("o holograma morfogênico ancora o CORPO ASTRAL da pessoa, que é devidamente reencarnado num corpo sintético em caso de morte") também podem enxergar isso. Mas, qualquer que seja a "interpretação", a forma final dos Azuis lembra bastante os "golems" do "Kiln People", no sentido de que os Azuis são feitos de um material inteligente misterioso (o "Plasma Mimético de Kerzuta" :) e lembram bonecos ou estátuas animados. Ah, sim, no "Kiln People" os golems tinham cores codificadas (os verdes eram os mais baratinhos, os negros tinham capacidades mentais aumentadas, etc), mas decidi fazer os Azuis, bem, azuis usando o mesmo "raciocínio mágico" por trás daqueles deuses hindus com pele azul: o azul é uma cor que lembra imediatamente a eternidade e a infinitude do céu e do mar. (Certo, sabemos que o mar e o céu não são infinitos, mas suponho que os primeiros hindus não tinham noção disso. :)

Por falar nos Azuis, também revelei neste capítulo que no meta-mundo do Planeta Sangue existem sociedades inteiras, que chamei de "Tradicionalistas", que não são pós-mortais nem imortais - em suma, são como as sociedades humanas atuais. Alguns leitores podem achar inconcebível que num mundo onde existe tecnologia para viver para sempre existam pessoas que escolham envelhecer e morrer, mas recomendo a esses leitores olharem o nosso mundo e constatarem que existem diversos grupos étnicos e sociais que recusam esse ou aquele estilo de vida ou tecnologia porque os mesmos contradizem princípios éticos, morais, filosóficos, religiosos ou simplesmente tradicionais do grupo em questão. Outro elemento que pode ter uma suspensão da descrença ruim para muitos aparece quando deixo claro que a imortalidade é em última instância insuportável: embora no meta-universo do Planeta Sangue a tecnologia possa extender indefinidamente o bom funcionamento do corpo humano, a *mente* humana continua suscetível ao tédio, e eventualmente escolhe acabar com sua própria existência para escapar a esse tédio. Acho que os leitores mais jovens em especial vão achar isso incompreensível, mas digamos que com "apenas" 36 anos de idade eu já noto que é cada vez mais difícil me surpreender ou entusiasmar com alguma coisa. Imagine então o que eu pensaria se chegasse a 360 anos? Sei lá, meu sentimento é de que, muito antes disso, continuar vivendo pareceria completamente sem razão de ser. Acho mais razoável supor uma sociedade onde, apesar da vida ser indefinidamente extensível, o suicídio e a eutanásia (para acabar com o sofrimento do tédio :) são vistos com naturalidade. Por outro lado, para outras sociedades essa aceitação do suicídio e eutanásia poderia ser vista só como um sintoma de que a pós-mortalidade não é exatamente compatível com a mente humana; daí eu também postular as sociedades Tradicionalistas. Enfim, desconfio que imortalidade só deve ser perfeitamente casável com uma sociedade de criaturas cujas mentes estejam além da condição humana.

E é aí que os Vampiros entram no meu meta-mundo ficcional... Eu sei, eu sei, eles estão demorando a aparecer, e acho que realisticamente só no Capítulo 4 o primeiro vampiro deve aparecer na historinha. :)

Ah, sim, e por último acho que vale a pena falar um pouquinho do (hihihihi) "Empíreo", que essencialmente é mais uma versão do "Hiperespaço" tão comum na ficção científica, ainda que como alucinei nas notas do primeiro capítulo no meu meta-mundo ficcional as "viagens empíreas" só são possíveis entre mundos de universos diferentes, afim de evitar os terríveis paus da viagem superluminal entre dois pontos do mesmo contínuo espaço-temporal; além disso optei por fazer as Esferas (que também poderiam ser chamadas de "naves empíreas") irem diretamente do oceano de um mundo para o de outro, de um jeito que na minha percepção delirante deve evitar violações da conservação da matéria-energia, e também evita o passo narrativo desnecessário (mas por algum motivo comum em boa parte das ficções científicas) da nave ter de ir ao espaço para depois mergulhar no Hiperespaço. De qualquer forma, alguém pode se perguntar porque chamei esse "espaço exótico" ficcional de "Empíreo" em vez de usar um nome comparativamente "normal" igual Hiperespaço, e a resposta é que "Empíreo" é uma referência à Divina Comédia: lá o Céu é dividido em vários níveis, correspondentes às esferas do (hihihihihihi) Sistema Geocêntrico, com níveis progressivamente mais elevados de almas, santos e anjos quanto mais superior o nível. Além do último nível (o das estrelas fixas, se não me engano) existia o Empíreo, a região além da própria Existência, habitada (ou preenchida?) por Deus. Me pareceu um nome bastante apropriado para um "espaço exótico" ficcional com propriedades inconcebíveis... ;-)

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Capítulo 1: Mar Morto

O diafragma metálico da comporta de ar se abriu como uma pupila em meio à escuridão, e a luz vermelha, sanguínea do sol de Taehstum inundou o compartimento, fazendo Nussaza Arieve semicerrar seus olhos, ofuscada. Logo que o dispositivo atingiu sua máxima abertura, a plataforma retrátil de observação começou a se desdobrar emitindo um zumbido baixo acompanhado por outros sons eletromecânicos sutis.

A segunda impressão sensorial que veio daquele mundo foi o... cheiro, na falta de palavra melhor. Foi um contraste tão grande com a atmosfera interior da Esfera que Nussaza exclamou quase por reflexo:

- O que há de errado com o ar deste planeta? Teoricamente estamos agora expostos ao ar livre, mas o tal "ar livre" lembra uma sala fechada cheia de gente. Bem, sem a parte dos odores de transpiração, mau hálito e afins, mas ainda assim é um ar... viciado.

Aparentemente despertando de uma de suas frequentes e prolongadas imersões na Nuvem, o Dr. Nobur Dehsmen voltou-se para Nussaza. Nobur era um homem de estatura mediana, robusto (mas esguio) e negro - muito negro aliás, com pele de um tom similar ao do carvão e o branco dos olhos visivelmente amarelado. Seu cronobiotipo parecia regulado para uma faixa não muito popular de talvez uns trinta e tantos anos de envelhecimento, incluindo o detalhe exótico de têmporas grisalhas se destacando em seu cabelo cortado rente. Nussaza considerava aquelas têmporas uma afetação estética meio cômica, mas curiosamente várias tripulantes femininas consideravam-nas "charmosas"; aliás, apesar do rosto um tanto comprido, quase cavalar, Nobur em geral era considerado bonito à sua maneira. De qualquer forma, aparentemente alheio ao olhar sempre observador de Nussaza, Nobur explicou em seu tom fleumático e professoral habitual:

- A atmosfera de Taehstum tem uma concentração de gás carbônico de quase dois por cento, Profa. Arieve. Embora isso esteja ainda confortavelmente abaixo dos limites de toxicidade, ainda assim é considerado desconfortável por boa parte das pessoas. Mas no fim das contas é uma característica positiva: o alto teor desse gás de estufa, aliado à relativamente elevada densidade da atmosfera como um todo, cria ao mesmo tempo um efeito de "cobertor" no Lado Escuro e uma super-rotação atmosférica bastante eficiente. Em outras palavras, a atmosfera inteira funciona como um razoavelmente eficiente sistema de troca de calor por circulação de ar entre os lados diurno e noturno. Como resultado, o Lado Escuro de Taehstum é bem menos frio do que se poderia imaginar para um hemisfério inteiro mantido numa noite eterna; de fato, em grande parte do Hemisfério das Trevas água líquida pode ser encontrada na superfície. Simetricamente, o Hemisfério Ensolarado não é tão horrivelmente quente assim.

Nesse momento, a plataforma extensível atingiu sua posição final com um estalo mecânico de encaixe. Nussaza considerou-se "salva pelo gongo", no sentido de que o ruído interrompeu Nobur, que de outra forma poderia discorrer indefinidamente sobre fenômenos atmosféricos, vulcanismo, regulação biosférica e sabe-se lá mais o quê característicos de mundos com rotação travada no estilo de Taehstum. Surpreendentemente, porém, o Dr. Dehsmen não só parou de divagar, como miraculosamente quebrou sua fleuma habitual, disparando na direção da plataforma depois de balbuciar rapidamente um "Ah, vamos ver a vista!". Nussaza quase teve de correr para acompanhá-lo.

Na plataforma, o impacto da luz solar vermelha e do ar viciado foi em muito sobrepujado pelo de uma paisagem pouco convidativa, sombria a ponto de poder ser definida como lúgubre. A luz do dia de fato vinha apenas de um estreito arco de sol vermelho que se projetava acima de uma opressiva camada de nuvens escuras e véus de chuva junto ao horizonte. Acima deste, o céu se estendia num degradê perturbador de tons de escarlate, bonina e violeta até chegar num quase-negro, caminhando na direção do Lado da Noite Eterna. Na altura do zênite, as estrelas mais brilhantes já podiam ser vistas. Abaixo do horizonte, um mar negro e perturbadoramente calmo e silencioso se estendia em todas as direções. As únicas ondas visíveis, denunciadas apenas por pequenos reflexos avermelhados na água, pareciam ser resíduos da própria emersão da Esfera, minutos atrás. Coerente com o mar morto, o ar também parecia anormalmente parado, com apenas uma quase imperceptível brisa soprando, muito embora ali fosse mar aberto e Nussaza e Nobur estivessem a uma altura considerável, dezenas de metros acima da superfície do mar.

Aliás, como se o visual opressivo da paisagem não fosse suficiente, a angústia de Nussaza era intensificada pelo projeto da própria plataforma de observação. A plataforma era quase toda transparente - incluindo o chão - justamente para possibilitar uma observação omnidirecional. Assim, olhando para baixo, o primeiro efeito colateral perturbador notado por Nussaza era o de enxergar seu próprio reflexo: uma mulher negra, alta, esguia (mas com curvas generosas reveladas e mesmo realçadas por seu traje de fluidopseudoderme), rosto bonito emoldurado por uma vistosa cabeleira de tranças finas que chegavam à sua cintura, e um cronobiotipo regulado para talvez uns vinte e poucos anos - como dizia Nussaza, velha o suficiente para parecer respeitável, mas nova o suficiente para ser atraente para a maioria dos gostos. Esse reflexo morfologicamente fiel estava, porém, virado de cabeça para baixo no piso transparente, dando a Nussaza a impressão de observar uma cópia de si mesma pendurada pelos pés por sobre um abismo. Uma cópia fantasmagórica, a propósito, já que o reflexo sobre material transparente era diáfano e (devido à luz sanguínea daquele sol) brilhava em vermelho. O segundo efeito colateral perturbador causado pela plataforma era a intensificação de sensações acrofóbicas. Nussaza realmente não se sentia bem vendo a curvatura da imensa Esfera descendo quase na vertical a partir do nível da plataforma, como se fosse um penhasco metálico a beira mar, com ondas relativamente suaves (mas ainda assim de alguma forma ameaçadoras) batendo e espumando láaaaaaa embaixo. Era quase caso de se pensar que aquilo era alguma brincadeira de mau gosto, uma espécie de sadismo arquitetônico, dos projetistas da Esfera.

Ou talvez eles fossem como Nobur, que parecia completamente indiferente ao panorama lúgubre e às alturas. Na verdade, ele continuava eufórico de uma forma quase infantil. Um tanto teatralmente, ele abriu os braços para indicar o mundo ao redor e declarou de uma forma pomposa que beirava (ou talvez ultrapassava) o ridículo:

- Contemple, minha cara Profa. Arieve! O Planeta Taehstum!

- Que é mais conhecido por Planeta Nahrtag, ou mais precisamente Nartagshtaain, na língua de seus mais notórios habitantes. E por falar nesses mais notórios habitantes, este mundo é muito mais conhecido pelo Hiperplano afora pela alcunha popular de... - Nussaza desceu sua voz para um tom bem mais sombrio - ... Planeta dos Vampiros.

Nobur voltou-se para Nussaza com uma expressão sutilmente irritada, e comentou:

- Eu realmente penso que essa expressão vulgar é inapropriada. Os Hematófagos de Taehstum não são vampiros sobrenaturais de lendas e superstições. São simplesmente uma meta-espécie artificial criada pelos Antípodas, as superinteligências do Outro Lado da Hiperesfera, quando de sua passagem pelo vizinho Aglomerado de Sihvinus, muitos séculos atrás. Assim sendo, os Hematófagos são explicáveis pelas leis da Biologia, Bionítica e afins... ainda que certos aspectos dos mesmos ainda sejam admitidamente inexplicáveis na prática para nós, como seria de se esperar de qualquer coisa envolvendo tecnologia Antípoda. Mas, enfim, não há nada de "sobrenatural" para ser visto aqui.

Nussaza suspirou e rebateu:

- Percebo que o senhor é mais uma vítima dessa tendência cultural que infelizmente se instalou na academia: a de ser tão "alérgica" a sobrenaturalismo que tem seu julgamento prejudicado em casos onde existe qualquer relação, por mais vaga que seja, com conceitos sobrenaturais, místicos ou religiosos. É exatamente o caso com os Vampiros - Nussaza frisou a palavra, como que num desafio - deste mundo. A propósito, antes de prosseguir creio ser de bom alvitre dissipar algumas generalizações indevidas. Por exemplo, a mitologia vampírica existe em incontáveis mundos, e é correspondentemente variada. Assim, enquanto em algumas mitologias os vampiros são descritos como entidades nitidamente sobrenaturais, completamente implausíveis para as leis naturais conhecidas e até para o bom senso, em outros eles parecem mais entidades biológicas razoavelmente possíveis. Por exemplo, em Leskaehccis as lendas descrevem vampiros como seres fantásticos que são cadáveres reanimados capazes de se transformar em animais alados e que fogem da imagem da Cruz Sextavada, um símbolo religioso local. Já em Chiahsien, as lendas sobre vampiros falam de pessoas com alterações biológicas extremas que só se alimentam de sangue humano, dormem de dia e ficam acordados a noite, e têm algumas capacidades realçadas em relação a Humanos Básicos, por exemplo supersentidos e, de certa forma, poderes mentais. Note que essa última descrição é desprovida de qualquer sobrenaturalismo e de fato poderia passar muito bem por uma descrição dos próprios Vampiros de Taehstum. Finalmente, é interessante notar que a palavra que os Vampiros usam para designar a si próprios em sua língua - Kehldun, plural Kelduhnen - significa literalmente "Vampiro" mesmo. É a mesma palavra que eles usam para se referir aos Vampiros lendários, ainda que nesse caso normalmente usem a expressão Keldunshfau, emendando uma palavra-sufixo que pode ser traduzida como "ficcional" ou "mitológico". Assim, considero essa expressão "Hematófagos de Taehstum" uma afetação acadêmica, e prefiro dar nome aos bois chamando os vampiros deste mundo de... Vampiros.

Nobur agora estava estranhamente quieto e com os olhos sutilmente arregalados, obviamente intimidado pelo contra-ataque acadêmico de Nussaza. A Profa. Arieve de fato estava satisfeita com o resultado, que era até previsível: embora o Dr. Dehsmen dominasse um volume de conhecimentos aparentemente infindo em ciências exatas e biológicas, Nussaza era decididamente superior em Humanidades e Línguas, exatamente onde ela foi buscar o ferramental para desmontar essa bobagem de "hematófagos".

Aquilo já estava se tornando uma pausa constrangedora na conversa, quando subitamente o olhar de Nobur tornou-se estranhamente vazio e desfocado, num claro indício de acesso à Nuvem. Foi uma imersão momentânea, porém; no instante seguinte o Dr. Dehsmen estava "de volta" e anunciou:

- A Comandante Ujoara acaba de informar que os nativos já fizeram contato. Uma delegação está vindo para cá, e estamos convidados a nos unir à comitiva que está se formando no Hangar 2 para encontrá-los. - Nobur fez uma pausa meio como se indeciso sobre se devia ou não prosseguir. Finalmente, acrescentou: - Interessantemente, é uma comitiva "multinacional" por assim dizer: primariamente ela está sendo enviada pela cidade flutuante mais próxima dos Empíreos, mas existem também representantes dos Leilsonehres...

- Ah! O Povo Ensolarado, os habitantes do Hemisfério do Dia Eterno!

- Exato. Mas, finalmente, e mais interessantemente ainda, receberemos também representantes dos Hema... Vampiros!

- Como assim, os próprios Vampiros? No lado diurno? Não, certamente não...

- De fato, não. Na verdade receberemos a visita de alguns espécimens de Nakis passiens.

- Lobisomens? Fascinante! - Nobur desta vez havia usado o nome oficial da espécie em Arcaico, correto e inambíguo, mas Nussaza não pôde resistir e de novo usou uma denominação mais popular, "lobisomem". Vendo o olhar de alarme contido do Dr. Dehsmen, porém, a Profa. Arieve amoleceu e acrescentou como que a título de desculpas: - É claro que "lobisomem" é admitidamente uma nomenclatura vulgar sem nenhum valor científico no caso. O lobisomem lendário é um humano que miraculosamente se transforma em um lobo, ou em algumas variantes um híbrido lupo-humano, em noites de lua cheia... ou luas cheias, existem variantes para mundos com mais de uma lua... ou mesmo para mundos sem lua. Nosso amado Ohjiren por exemplo não tem luas, mas existe uma não muito conhecida variação da lenda do lobisomem associando-o às "noites diurnas", na época do ano em que o sol secundário está posicionado em nosso céu noturno. Mas onde eu estava mesmo?

- Dizendo que não é correto chamar o Nakis passiens de "lobisomem".

- Ah, sim. Bom, o Nakis passiens, ou Canimórfico de Taehstum, não é um humano que por algum motivo astronômico se transforma temporariamente em uma criatura lupídea. Na verdade são uma espécie criada pelos Vampiros a partir de cães, que foram evoluídos artificialmente até se tornarem seres inteligentes, bípedes e destros.

- O que, incidentalmente, lhes dá uma aparência que alguns consideram vagamente humanóide - lembrou Nobur. - Pelas fotos e vídeos que já vi, considero a associação um tanto forçada, mas de qualquer forma talvez a origem do nome esteja mais aí que na lenda propriamente dita.

- Bom, qualquer que seja o motivo, é o nome que os Vampiros também escolheram. O nome para os Canimórficos em Vampírico é Urndshnem, o que é literalmente traduzido como "homens-lobo" mas poderia igualmente ser, é claro, "lobisomens". Mas, qualquer que seja o nome, os Canimórficos foram criados pelos Vampiros para auxiliá-los em várias tarefas, inclusive algumas que seriam um tanto... desafiadoras para eles.

- Por exemplo representá-los no lado diurno deste mundo? - Sugeriu Nobur com um leve sorriso. - Bom, vamos então conhecer esses "procuradores" dos Vampiros...


* * *

Notas do Autor


A idéia para escrever essa historinha desenvolveu-se aos poucos, e ao longo de anos. A primeira inspiração parece ter vindo de um sonho que tive acho que ainda na primeira metade da década, sonho esse que se passava em uma Terra onde vampiros governavam a Humanidade e eram de fato a espécie dominante do planeta. Ano passado, quando vi no 30 Dias de Noite os vampiros ficarem tão felizes com uma cidade além do círculo polar que fica um mês sem sol no inverno, pensei "será que eles não ficariam mais felizes ainda com um planeta onde um dos hemisférios ficasse permanentemente de noite?". Finalmente, este ano, numa das muitas discussões interessantíssimas que rolam na lista Sociedade Lunar, de que participo, saiu esse assunto de planetas com um lado eternamente de dia e outro eternamente de noite, e que tipos de espécies e civilizações poderiam se desenvolver neles, e até lembrei que isso já foi explorado pela ficção científica em um filme obscuro dos Anos 90, o White Dwarf.

Mas, até onde consegui me lembrar, o tema de um planeta assim com o lado escuro povoado por vampiros aparentemente nunca foi explorado. Outra coisa que aparentemente não foi explorada é a temática de vampiros em um mundo trans-humano e pós-mortal, onde as pessoas normais basicamente não envelhecem mais (ou melhor dizendo usam um grau de envelhecimento como quem usa, digamos, um corte de cabelo ou qualquer outro aspecto opcional da aparência) e onde a morte é, de certa forma, um inconveniente passageiro; como a condição vampírica seria vista num mundo onde a juventude eterna e a imortalidade seriam consideradas coisas “naturais” e para todos? A propósito, se adicionarmos pós-humanidade a mundo assim é razoavelmente fácil "explicar" a existência dos vampiros com uma suspenção da descrença bem passável...

Então, automaticamente fiquei morto de vontade de escrever uma historinha assim! O resultado é este "Planeta Sangue".

Por falar no título, o caminho até chegar no mesmo também não foi muito direto. Inicialmente pensei em chamar a historinha simplesmente de "Planeta dos Vampiros", mas descobri que existe um filme italiano de ficção científica dos anos 60 cujo título em Inglês é Planet of the Vampires! (Apesar do título, a historinha do filme é bem diferente da que imaginei para este livro, felizmente. E de qualquer forma o título em Inglês é bem diferente do "Terror no Espaço" que seria a tradução direta do título original.) Então fui pensar em outro título. Aí vi inspiração vindo de duas fontes diferentes. Em primeiro lugar, recentemente notei um padrão de coisas relacionadas a vampiros terem "sangue" (ainda que no Inglês blood) no título, como nos animês "Blood+" e Trinity Blood e na EXCELENTE série da HBO True Blood. Em segundo lugar, lembrei do filme que mais me marcou em 2007, o fantáaaaastico Planeta Terror. Logo, nada mais natural que batizar o livro de "Planeta Sangue"! :)

Uma vez decidida a premissa básica do planeta com lado permanentemente noturno povoado por vampiros (e que o tempero adicional de um futuro trans-humano), existiam premissas auxiliares nas quais eu deveria pensar? Sim, era necessário que o Planeta Sangue fosse parte de um universo ficcional maior com múltiplos mundos habitados, e que as pessoas de um mundo pudessem viajar para outro. Isso porque eu optei por contar a historinha pelos olhos de "forasteiros" para os quais o Planeta Sangue é quase tão novo e inusitado quanto o é (ou deveria ser, na minha expectativa otimista :) para o leitor - como já dá para ver acontecendo com Nobur e Nussaza, nesse capítulo. E para isso existem múltiplas soluções. Eu poderia por exemplo optar pela solução mais fácil de um universo de space opera (ou, porque não traduzir, "ópera espacial"), com naves com algum meio mágico de propulsão superluminal que viajam por entre mundos habitáveis a anos-luz de distância uns dos outros. Mas recentemente desenvolvi uma birra com a "ópera espacial" clássica por causa do que chamo de "viagem pseudo-espacial instantânea". Em um universo de space opera é muito comum as naves ditas "espaciais" na verdade só irem um pouco acima da atmosfera do mundo de partida e de lá se teleportarem magicamente para as imediações da atmosfera do mundo de chegada. Aí fica a questão: se a intenção é apenas ter um dispositivo ficcional que leve as pessoas de um mundo ao outro, porque não algo que leva diretamente da superfície de um mundo à superfície de outro - por exemplo aqueles portais de "Stargate"? Por falar em portais, eu até pensei em usar portais como os do A Árvore dos Mundos, mas no final decidi que não porque violações da conservação da matéria-energia sempre me deixaram bolados com aqueles portais. (Similarmente, portais a la Stargate implicam em violações de mais coisas ainda, como a causalidade, por implicarem em transmissão superluminal de informação.)

Oh, bem, mas não vou aborrecer muito o leitor com implicâncias de física real que provavelmente só têm importância para mim. Basta dizer que no final acabei por inventar um universo ficcional onde as pessoas viajam de um mundo para outro nessas misteriosas "Esferas", que desaparecem dum oceano do mundo de origem e reaparecem num oceano do mundo de destino. Muitos leitores provavelmente estão se perguntando algo como "Mas porque na água? Porque as esferas não aparecem do nada em pleno ar?". A resposta é que "vi" um meio da conservação da matéria-energia ser preservada localmente se o negócio acontecesse na água - mas, como prometi não aborrecer as pessoas com Física, vou deixar como "exercício para o leitor" descobrir o meu raciocínio. (Supondo é claro que ele faça algum sentido, e não há qualquer garantia disso. :) Ah, sim, e essas Esferas viajam só entre mundos situados em universos diferentes (ou, dizendo de outra forma, contínuos espaço-temporais diferentes, ou branas diferentes se eu começar a catar termos de Teoria das Cordas), o que efetivamente escuda aqueles problemas de existirem observadores enxergando violações da causalidade, que acontecem com os deslocamentos superluminais dentro de um mesmo universo. (Pelo mesmo motivo havia imaginado o lance dos portais conectando mundos de universos diferentes no "A Árvore dos Mundos".)

Aproveitando que mencionei Nussaza e Nobur dois parágrafos acima, acho que convém falar um pouquinho dos nomes e línguas do universo ficcional. Como devo ter deixado transparecer no Árvore dos Mundos, gosto de desenvolver minhas historinhas em futuros imensamente distantes, tão distantes que influências da nossa cultura foram ou totalmente perdidas ou então não podem mais ser identificadas no tempo histórico. Aqui no Planeta Sangue não é diferente. Isso porém pode ser bem desagradável para as pessoas que gostariam de ler historinhas com personagens chamados "João" e "Maria" e planetas chamados "Ibitipoca" e "Camboriú". Isso porque, ao longo de milhares de anos, os nomes vão inevitavelmente mudar para coisas bizarras e irreconhecíveis. (Algumas pessoas costumam apresentar contra-argumentos do tipo "ah, mas um nome igual 'Jesus' existe há dois mil anos do mesmo jeito", e eu tenho de destruir essa ilusão explicando que o nome original provavelmente era "Yeshua", que foi latinizado para "Iesus", até finalmente ser aportuguesado para Jesus. E devo estar perdendo ou supersimplificando mais umas transformações, não sou linguista.) De forma que eu não conseguiria suspender a minha própria descrença escrevendo historinhas de futuro distante com nomes tipo "João" e "Ibitipoca".

Na verdade acho que os leitores que não gostam de nomes estranhos estão reclamando de barriga cheia – os nomes inventados de ficção científica e fantasia são incrivelmente amigáveis comparados com os nomes do mundo real. Basta compilar uma lista de autores de algumas dezenas de livros e artigos de várias nacionalidades de todos os continentes para ver nomes que você sequer seria capaz de imaginar. ;-) Mesmo assim, dei uma colher de chá para os leitores que reclamam de "nomes esquisitos" aqui no Planeta Sangue. Todos os nomes “estranhos” de pessoas e lugares aparecendo no livro na verdade são anagramas – frequentemente só no nível das sílabas, e frequentemente com algumas alterações de ortografia - de nomes existentes em línguas existentes. Assim os nomes de Nobur, Nussaza e demais visitantes que chegam na Esfera são anagramas de nomes em Português. Os nomes do Arcaico, a língua morta que os personagens usam para fins científicos e às vezes para nomes “universais” independentes de língua (por exemplo, os nomes “oficiais” dos planetas), são anagramas de palavras em latim. Os nomes de origem Vampírica são anagramas de palavras em Alemão, e com uns rebuscamento ortográfico ocasional de vogal dobrada que peguei emprestado do Holandês. Finalmente, os nomes dos Leilsonehres, os habitantes do hemisfério diurno do Planeta Sangue, são anagramas de palavras em Francês.

Finalmente, ainda falando de Nobur e Nussaza, alguns talvez achem estranho os dois serem negros e podem suspeitar que estou tentando faturar com toda essa histeria coletiva de Obamania, ou então me curvando à correção política avassaladora e onipresente dos nossos tempos. :) Bom, na verdade os imaginei assim porque antes imaginei Ohjiren, o mundo natal dos dois, como um planeta ao redor de um sol branco (e aliás com um sol adicional fora de sua órbita, como mencionado de passagem neste capítulo) - ou, definindo com mais rigor, uma estrela da classe espectral F, mais forte e brilhante - e incidentalmente com mais radiação UV - que um sol amarelo classe G como o nosso. Com um sol desses, imagino que talvez pessoas de pele clara fossem bem suscetíveis a câncer de pele até nas latitudes médias de um mundo assim, e então imaginei-o povoado por raças de pele mais escura. A intenção, acho que é óbvio, é fazer um contraste com o Planeta Sangue, cujo sol anão vermelho Classe M, paupérrimo em UV, seria bastante amigável para pessoas louríssimas, platinadas ou mesmo albinas; além disso, imagina-se que os vampiros (que não apareceram ainda) não devem ser as pessoas mais bronzeadas do mundo. :)

Por falar nos vampiros ainda não terem aparecidos, o (por assim dizer) subtítulo deste livro fala de vampiros, lobisomens, mutantes, monstrons aliens e zumbis, e embora já se tenha falado diretamente sobre os dois primeiros neste primeiro capítulo os outros continuam uma incógnita. Bom, a bem da verdade “mutantes” é um abuso de linguagem, estou me referindo na verdade a pessoas com modificações genéticas e biológicas muitas vezes propositais; nesse sentido Nussaza e Nobur já são “mutantes” em relação a nós por terem total controle do processo de envelhecimento. Agora, quanto aos monstros aliens e zumbis... aí peço aos aficionados desses tipos de criaturas para terem fé e paciência, os bichos alienígenas e os mortos-vivos (ou algo parecido :) ainda vão aparecer. Aliás uma coisa que não mencionei é que o tal sonho de anos atrás mostrava uma Terra dominada por vampiros mas zumbis também eram importantes para a "trama"; e que um dos motivos que me animaram a escrever esta historinha foi a sinopse que li recentemente de um quadrinho (não lembro o nome de imediato e estou com preguiça de pesquisar) onde existe uma guerra entre vampiros e zumbis num futuro pós-apocalíptico...